29 julho 2004

Na política, por exemplo

As discussões sérias e críticas são sempre difíceis. Nelas entram sempre elementos não racionais, tais como os problemas pessoais. Muitos participantes numa discussão racional, ou seja, crítica, consideram particularmente difícil terem de desaprender aquilo que os seus instintos lhes ditam (e aquilo que lhes é ensinado por todas as sociedades que debatem): ou seja, vencer. Pois o que têm de aprender é que uma vitória num debate não significa nada, ao passo que a mínima clarificação de um problema que se tenha - mesmo a mais pequena contribuição para uma compreensão mais clara da sua própria posição ou da de um opositor - constitui um grande sucesso. Uma discussão que se vence, mas que não ajuda na alteração ou clarificação da vossa mente, nem que seja só um pouco, deverá considerar-se como uma perda completa.

Karl Popper

(1999), O Mito do Contexto, Lisboa: Edições 70, p.67


Um ideal, dir-se-á. Mas como seria a política sem ideais?

Liberdade crítica

Depois de se ler este artigo da deputada Adriana Aguiar Branco no JN de hoje, a pergunta que fica no ar é:

* Será admissível que o militante de um partido venha para a praça pública atacar o líder do seu próprio partido?

Pensemos, por exemplo, no caso do PSD: que aconteceria se todos os seus militantes usassem publicamente da liberdade "crítica" de Alberto João Jardim, de Filipe de Menezes, de Pacheco Pereira ou Marcelo Rebelo de Sousa para atacar políticas ou pessoas do partido de que fazem parte?

Excertos de um livro não anunciado (194)

(...) Ao contrário das ligações de sucessão que unem elementos da mesma natureza, com base num vínculo de causalidade, as ligações de coexistência estabelecem um vínculo entre realidades de nível desigual, em que uma é apresentada como expressão ou manifestação da outra. Estão neste caso as relações entre a pessoa e os seus actos, os seus juízos ou as suas obras. Com efeito, tudo o que se diz sobre uma pessoa, diz-se em função das suas manifestações e tem por base a unidade e a estabilidade observáveis no conjunto dos seus actos. Presumimos essa estabilidade quando interpretamos o acto em função da pessoa. Se alguém age no desrespeito dessa estabilidade, acusamo-la de incoerência ou de mudança injustificada. É o carácter de uma pessoa que confere sentido e delimita o alcance do seu comportamento, mas são também as sua manifestações que nos permitem formar uma ideia sobre qual seja o seu carácter. Donde se pode concluir que a ideia que se faz da pessoa e a maneira de compreender os seus actos estão em constante interacção. É certo que, como refere Perelman, não se pode encarar a pessoa apenas no quadro da sua estabilidade, pois a sua liberdade e espontaneidade estão sempre associadas à possibilidade de mudança e adaptação, quer por iniciativa própria, quer por imposição do real. Reconhecer-se-á por isso a natureza ambígua das ligações de coexistência que se estabelecem entre as pessoas e os actos que praticam. Mas dado que só se conhecem as pessoas através das suas manifestações, são os actos que influenciam, sem dúvida, a nossa concepção sobre esta ou aquela pessoa. Uma concepção que, no entanto, mantém sempre uma certa relatividade, pois como salienta Perelman, “todo o acto é considerado menos como índice de uma natureza invariável do que como uma contribuição para a construção da pessoa que apenas termina com a sua morte” * (...)

* Perelman, C.(1993), O Império Retórico, Porto: Edições ASA, p. 107


26 julho 2004

Quem consegue engolir?

José Rodrigues dos Santos e o seu "primado da subjectividade" (*), no Jornal de Notícias de hoje:

As coisas têm a importância que lhes quisermos dar. O futebol não tem importância nenhuma e tem toda a importância. Depende do valor que lhe atribuirmos.


Ora vamos lá tentar engolir isto:

1.ª tentativa: "As coisas têm a importância que lhes quisermos dar".

2.ª tentativa: "As coisas têm a importância que lhes quisermos dar".

3.ª tentativa: "As coisas têm a importância que lhes quisermos dar".


Chega. Isso não deve ser mesmo de engolir. Ou será que se eu não atribuir
importância a uma coisa ela deixa de ter o seu valor? Concerteza que o futebol tem um certo valor para mim, que vivencio como muito bem me apetecer. Mas o problema é que não posso afirmar tal valor (que lhe atribuo) sem recorrer à sua justificação.

Ora as razões a apresentar em favor da minha opção ou têm um fundo mínimo de objectividade ou são totalmente subjectivas. No primeiro caso, poderei aspirar a ser compreendido, ainda que a preferência dos meus interlocutores seja bem diferente da minha. No segundo caso, melhor seria que ficasse calado pois, se a minha avaliação ou escolha se estrutura num motivo puramente subjectivo, também só eu a poderei entender. Aliás, a mais ninguém deveria interessar.

(*) "Primado de subjectividade" já defendido por JRS no seu livro "A Verdade da Guerra”

25 julho 2004

No Cais de Gaia: grande livros, pequenos preços

Se reside na área metroplitana do Porto, ou se por qualquer razão vier para estes lados, não perca  a mini-feira do livro que está a decorrer no Cais de Gaia até ao próximo dia 15 de Agosto.  Grandes obras a pequeninos preços foi o que por lá constatei na minha visita de ontem. Parece,  por isso, ocasião soberana para adquirir alguns livros que, embora já lidos ou estudados, ainda não façam parte da nossa biblioteca pessoal.

Que livros comprei? Ok, eu digo:


A 5 Euros:
 
* AA VV (1999), DO MUNDO DA IMAGINAÇÃO À IMAGINAÇÃO DO MUNDO, Lisboa: Fim de Século  
  
* Levinas, Emmanuel (1996), A UTOPIA DO HUMANO. Lisboa: Instituto Piaget 

* Dahrendorf, Ralf (1993), ENSAIOS SOBRE O LIBERALISMO. Lisboa: Editorial Fragmento

* Herder, Johann Gottfried (1987), ENSAIO SOBRE A ORIEGEM DA LINGUAGEM. Lisboa: Edições Antígona

* Voltaire (1992), CARTAS FILOSÓFICAS. Lisboa: Editorial Fragmento

* Popper, Karl (1997), O REALISMO E O OBJECTIVO DA CIÊNCIA. Lisboa: Publicações D. Quixote

* Putnam, Hilary (1992), RAZÃO, VERDADE E HISTÓRIA. Lisboa: Publicações D. Quixote

 
A 2,5 Euros:
 
* Pintasilgo, Maria de Lourdes (1985), AS MINHAS RESPOSTAS. Lisboa: Publicações D. Quixote 

* Skinner, Quentin (1992), AS CIÊNCIAS HUMANAS E OS SEUS GRANDES PENSADORES. Lisboa: Publicações D. Quixote 

* Meyer, Michel (1991), A PROBLEMATOLOGIA. Lisboa: Publicações D. Quixote 

Nada mau...

 




22 julho 2004

Excertos de um livro não anunciado (193)

Quanto aos argumentos fundados no real, eles fazem apelo a dois tipos de ligação de inegável importância persuasiva: as ligações de sucessão, como a relação causa e efeito e as ligações de coexistência,  centradas na relação entre a pessoa e os seus actos. Se nas ligações de sucessão, o que se relaciona são fenómenos de nível idêntico, já as ligações de coexistência, apoiam-se em termos de nível desigual, como por exemplo, entre a essência e as suas manifestações.  No caso das ligações de sucessão, a ideia de que existe um vínculo causal entre fenómenos, permite à argumentação dirigir-se em três direcções: para a procura das causas (e dos motivos, no caso dos actos intencionais), para a determinação dos efeitos e para a apreciação das consequências. E com base nas correlações, nas leis naturais e no princípio de que as mesmas causas produzem os mesmos efeitos, é possível formular hipóteses numa dada situação e submetê-las ao controlo de apropriadas investigações. Vão neste sentido, os dois exemplos adiantados  por Perelman: aquele que num jogo de sorte ganha excessivas vezes poderá tornar-se suspeito de trapaça, pois uma tal suspeita torna a sua façanha mais compreensível e no tribunal, se várias testemunhas concordam na descrição de um certo acontecimento, sem que antes se tenham previamente entendido, o juiz tenderá a concluir que todas assistiram a esse mesmo acontecimento, cuja realidade atestam. 

20 julho 2004

Boaventurados sejam

Segundo o "Correio do Brasil" da semana passada, o sociólogo Boaventura Sousa Santos é agora conselheiro de dois ministros brasileiros: Tarso Genro (ministro da Educação) e Gilberto Gil (ministro da Cultura). É caso para dizer: Boaventurados sejam...

19 julho 2004

A olhar para o palácio

Ontem fui ao Palácio do Freixo, em Campanhã, ali mesmo onde a cidade do Porto se fina e começa a belíssima estrada marginal para Entre-os-Rios. Fui para apreciar a exposição sobre o holocausto que lá decorre de 16 a 31 de Julho (e de que falarei, talvez, noutra altura) mas também para, no melhor dos sentidos, "olhar para o palácio", um palácio que, tendo o peculiar traço de Nicolau Nasoni, é, como se sabe, dos mais fiéis testemunhos da arquitectura solarenga portuense do século XVIII (1750) e, em geral, do barroco português. Deslumbrante a panorâmica a partir dos seus jardins e miradouros, agora que se encontra totalmente restaurado. Soberba a sua implantação senhorial sobre a margem direita do Rio Douro. Aqui ficam duas imagens que reflectem ainda o abandono a que por tempos e tempos esteve votado e também esta brevíssima apresentação histórica. Observe-se ainda a magnífica fachada principal do palácio. Mas, sobretudo, passemos ao seu interior, para nos extasiarmos com a imponência do Salão Nobre: a denominada "Sala dos Espelhos". Venham, venham, por favor... é por aqui. Confessem lá: não justifica uma visita?


À atenção da nova Ministra da Cultura:
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É escandaloso que apesar de há muito concluídas as obras de restauro (e à excepção dos quinze dias previstos para a actual exposição), este monumento nacional permaneça encerrado ao público e sem qualquer tipo de utilização. Tanto dinheiro gasto para nada. Isto tem um nome: gestão ruinosa. Só não se conhecem os responsáveis. Perante exemplos destes, ainda será de estranhar que o cidadão anónimo acredite cada vez menos em eleições?



Excertos de um livro não anunciado (192)

(..) Também a comparação pode constituir um argumento quase lógico, quando na argumentação se utiliza um sistema de pesos e medidas sem que dê lugar a uma pesagem ou medição efectiva. O efeito persuasivo da comparação só se realiza, contudo, por haver a convicção de que se pode validá-la por uma operação de controlo. Dizer “as suas faces são vermelhas como maçãs” ou “é mais rico do que Cresus” são dois dos exemplos avançados por Perelman, em que parece exprimir-se um juízo controlável. Esse efeito persuasivo é de natureza variável, em função do termo de comparação que for escolhido. Assim, afirmar que um escritor é inferior a um reputado mestre ou considerá-lo superior a uma nulidade patente, é, segundo Perelman, “exprimir, em qualquer dos casos, um juízo defensável, mas cujo alcance é bem diferente” *. Numa pesagem ou medição real, a escala de medida é neutra e invariável. Mas na argumentação quase lógica, é muito raro que o termo de comparação seja determinado de forma rígida. Aqui o objectivo é mais impressionar do que informar e por isso mesmo, a indicação de uma grandeza relativa pode ser mais eficaz do que a indicação de uma grandeza absoluta, desde que o termo de comparação seja bem escolhido. Como diz Perelman, “para realçar a imensidão de um país, será mais útil dizer, em Paris, que ele é nove vezes maior que a França do que indicar que  cobre metade do Brasil”  **. (...) 

* Perelman, C., (1993) O Império Retórico, Porto: Edições ASA, p. 93
** Ibid. p. 94  

17 julho 2004

Estes senhores...

Pacheco Pereira tem toda a razão: pobre país, o nosso, que parece agora viver em permanente clima de novela, como bem o retrata Paula Ribeiro, no Correio do Brasil,  da passada quinta-feira:  

Para quem está chegando a Portu­gal e não está entendendo bem o que está acontecendo, é o seguin­te: há dois anos e meio o primei­ro-ministro socialista foi-se em­bora para casa antes do final do mandato. Há três semanas o pri­meiro-ministro social-democrata foi-se embora para Bruxelas no meio do seu mandato. Há uma semana o Presidente da Re­pública (que até era socialista, mas agora nin­guém sabe), demorou, demorou e resolveu (ele pode) que o melhor para o país era que o novo primeiro-ministro fosse o vice-presidente do Partido Social Democrata (PSD) que no entan­to era presidente da Camara de Lisboa.
Está acompanhando o raciocínio? Óptimo! Porque a história vai se complicar ainda mais...
O Presidente da República entendeu que não era preciso convocar eleições porque o novo primeiro-ministro continuaria a gover­nar com o apoio do partido mais à direita do país, que é bem pequenino e nao teve nem 6% dos votos nas últimas eleições. 
Aí o líder dos socialistas ficou tão chateado que também resolveu ir-se embora.
Entao havia uma esperança: voltaria de Bruxe­las um ex-comissário capaz de deixar todo mundo feliz no Partido Socialista, e até na oposição. 
Mas ele tambem nao quis vir.
O senhor que é o novo primeiro-ministro de Portugal, coitado, não é muito querido pe­los colegas do partido dele. O novo lider dos socialistas ainda ninguém sabe quem é, mas aquele outro senhor, o do partido bem peque­nino, ja tem quatro ministérios e não sei quantas secretarias de estado.
Estes senhores que agora mandam em Portu­gal são muito risonhos, saem em muitas revistas, aparecem sempre na televisão e usam uns ternos (fatos) muito bem feitos. Tambem têm todos um problema com o barbeiro. Mas que importância tem isto se eles são os únicos que querem ficar quando todos os outros se foram embora? 

Paula Ribeiro – in Correio do Brasil, 15.07.2004


15 julho 2004

Eu também não sei dizer que não

Fiz de tudo para evitar o convite:

- evitei cruzar-me com os marretas que insistem em formar governo (como se isso fosse necessário)

- deixei de atender telefones e de ler emails

- fiquei sem pio no blogue durante quatro dias seguidos.

Mas de nada valeu. Fui mesmo escolhido. Ainda pensei em sair à rua, incógnito, por uma última vez, mas o WALDORF, futuro Ministro Sem Pasta dos Marretas, já estragara tudo ao revelar que fui virtualmente convidado para o Ministério dos Assuntos Parlamentares. Vem tudo aqui, na Última Hora. Eu sei. Acabou o meu sossego. Mas se, como diz o outro, for para bem da Nação... até nem me importo de passar a receber muito mais do que ganho actualmente. Viva Portugal.

11 julho 2004

Pacheco na oposição

Adivinhava-se.

Pelo modo como nos últimos dias foi erguendo a sua voz contra Barroso, contra Santana, contra Portas e contra o populismo despesista.

Pelo tom depreciativo como associou a escolha de Barroso às fraquezas da actual Europa.

Pela confissão pública de que se sente traído.

Pelo apoio que deu à tese de Golpe de Estado de que falou Manuela Ferreira Leite.

Pela chuva de críticas que fez ao desempenho de Santana Lopes como presidente da Câmara de Lisboa.

Por muito mais que nem é preciso mencionar.

Adivinhava-se.

Se a tão esperada decisão do Presidente da Republica viesse confirmar os seus piores receios (como veio), Pacheco Pereira teria que fazer qualquer coisa.

Não admira, por isso, que, logo no dia seguinte, pela manhã cedo, afixasse no seu Abrupto uma espécie de agenda, algo enigmática:

Chegados à fase do “que fazer?”, vamos começar a falar do que é possível fazer, na sequência que se usava nas velhas reuniões associativas: “Informações. Análise da situação. Medidas a tomar”. É só um começo. Bom ânimo!

O enigma, porém, viria a ser desfeito ontem à noite, já na parte final do programa “Quadratura do Círculo”, na SIC Notícias, quando Pacheco Pereira anunciou com todas as letras que vai fazer oposição... ao PSD. Resta saber se “no” PSD ou fora dele.

Seja como for, o PS deverá ficar-lhe eternamente grato, pelo menos, enquanto durar o seu “apagão” de liderança.

08 julho 2004

Excertos de um livro não anunciado (191)

(...) Argumentos quase lógicos são também os que aparentemente se estruturam com base em propriedades lógico-formais como a transitividade e a inclusão, onde as relações puramente formais “igual a” “incluído em”, “maior que” ou “o todo é maior que cada uma das suas partes” conferem uma acentuada persuasividade ao que é afirmado, mesmo quando tal ligação lógica seja susceptível de ser desmentida pela experiência ou dependa de prévios juízos de valor. O mesmo se diga da propriedade de divisão, quando se tende a mostrar que só resta uma alternativa e que esta consiste em escolher a parte que constitui o mal menor, ou seja, quando a questão é apresentada sob a forma de um dilema constringente. (...)

07 julho 2004

O dito hilário

Destaque para este dito tão hilário do Alberto, no seu Homem a Dias:

Não sei se é por tê-los desactivado, mas a verdade é que este blogue voltou a ficar sem comentários.

Não é impagável?

06 julho 2004

Autorias persuasivas

Por vezes ensaio uma metáfora um tanto ousada, mas já vi que ninguém a aceitaria se fosse minha (não passo de um contemporâneo) por isso tenho-as atribuído a um persa ou normando transviado. Assim os meus amigos têm-me dito que são boas; e claro que nunca lhes contei que as inventei por ter gostado da metáfora. Afinal os Persas ou os Normandos podiam ter inventado essa metáfora, ou outras muito melhores.

Jorge Luis Borges

in "Este Ofício de Poeta", Lisboa: Editorial Teorema, pp. 82-83

Um bom desafio

Assistimos, nos últimos dias, a uma luta terrível pela imposição da legitimidade de uma solução para a crise política aberta pelo ainda primeiro ministro Durão Barroso. E que nem sempre, dos vários lados em que os interesses se movimentam, tal tentativa de imposição se tem pautado por argumentos e pelo debate de ideias. Dir-se-ia que tudo isso é normal. Mas também deveria ser normal analisar as análises. Confrontar o que se disse com aquilo que, entretanto, se veio a saber. E ver onde é que esteve a manipulação, se a houve e quando a houve. Aparentemente, já há muita matéria sobre a mesa para trabalhar.

in Jornalismo e Comunicação

05 julho 2004

Música para o Adufe

Este blogue, que é, indiscutivelmente, uma fonte de cultura, divertimento e simpatia, está a comemorar também o seu primeiro aniversário. Merecidos parabéns, rui branco.

04 julho 2004

Parece mas não é (jornalismo)

Há dias interpelei o Provedor dos Leitores do "Jornal de Notícias" sobre uma prática cada vez mais generalizada nos diferentes órgaos de informação e que é a de se dar uma aparência de jornalismo à publicidade ou a "conteúdos informativos" de cariz essencialmente comercial.

Na sua edição de hoje (p. 25) o JN traz a resposta a essa minha questão onde tanto o Provedor como o director de Redacção do JN assumem uma posição que merece digno registo e congratulação, como abaixo se documenta.


CARTA AO PROVEDOR:

Dig.º Sr. Provedor,

Reparei que no "Notícias Magazine" do passado domingo [20 Junho 2004], o texto da entrevista feita a Margaret Doody, autora do livro "Aristóteles Detective", vinha encabeçado pelo nome da jornalista Ana Teresa Ferreira e pelo seu endereço de e-mail. Não tenho o prazer de conhecer ou ter ouvido falar no nome desta entrevistadora mas, para o caso, nem isso importa por aí além. Como leitor diário do JN, conheço a sua credibilidade institucional, e isso faz-me confiar nos princípios ético-jornalísticos de cada um dos seus colaboradores. Mas quando o endereço de email da dita entrevistadora remete para o “Círculo dos Leitores” (www.circuloleitores.pt) poderei ainda manter essa mesma confiança? Dir-se-á que o "Notícias Magazine" não é propriamente o "JN", que se trata apenas de um suplemento, com direcção autónoma, etc, etc. mas o argumento não colhe. E não colhe por diversas razões que não cabe aqui explanar nem seria preciso, já que o próprio suplemento acaba com todas as dúvidas, logo no topo da capa, onde se pode ler: “Este suplemento faz parte do Jornal de Notícias”. Isso mesmo, “faz parte”. E se faz parte, o que mais terá pesado na publicação desta entrevista? Os critérios jornalísticos do "JN" ou os (legítimos) interesses comerciais da editora de Margaret Doody em Portugal? Seja qual for a resposta, deveriam ser refreadas todas as tentativas de dar à publicidade uma aparência jornalística, expediente que, por si só, desqualifica e compromete a desejável relação de transparência entre o jornal e os seus leitores.

Melhores cumprimentos

Américo de Sousa


RESPOSTA DO PROVEDOR:

Condições para confiar no jornal

No início de Junho, aludi, neste espaço, às vantagens e inconvenientes que poderão decorrer do facto de o jornal incorporar publicações que são produzidas por equipas editoriais autónomas relativamente à sua Direcção Editorial. O leitor Américo de Sousa escreveu ao provedor sobre um outro caso. Observa ele que, na "Noticias Magazine" de 20 de Junho último, é publicada uma entrevista com Margaret Doody, autora do livro "Aristóteles Detective", cuja editora em Portugal é a mesma que aparece no endereço de correio electrónico da entrevistadora. "Como leitor diário do JN conheço a sua credibilidade institucional, e isso faz-me confiar nos principios ético-jornalísticos de cada um dos seus colaboradores" - salienta. Contudo, o facto apontado leva-o a interrogar-se sobre se poderá ainda manter essa confiança. E dizer que a "Noticias Magazine" tem direcção autónoma é argumento que para este leitor "não colhe", já que a revista traz, logo na capa, a advertência "de que "faz parte do JN''. "E se faz parte - acrescenta - o que mais terá pesado na publicação desta entrevista? Os critérios jornalísticos do JN ou os (legítimos) interesses comerciais da editora de Margaret Doody em Portugal? Seja qual for a resposta, deveriam ser refreadas todas as tentativas de dar à publicidade uma aparência jornalística, expediente que, por si só, desqualifica e compromete a desejável relação de transparência entre o jornal e os seus leitores". Sobre este assunto, o director de Redacção do JN menciona, em comentário ao sucedido, o facto de se ter tratado de um caso pontual, em que a entrevistadora dispunha de condições únicas de acesso a entrevistada. Mas reconhece que o leitor tem razão e põe correctamente o problema. O caso, em si mesmo, parece coisa menor. Mas não é. A credibilidade do jornal joga-se aqui.

Provedor dos Leitores - Manuel Pinto in JN de 04 Julho 2004

01 julho 2004

Excertos de um livro não anunciado (190)

(...) Também a regra da justiça e a reciprocidade que lhe é inerente, fundadas no tão proclamado princípio de igualdade de tratamento perante a lei são, como nos lembra Perelman, a expressão de uma regra de justiça de natureza formal, segundo a qual “os seres de uma mesma categoria essencial devem ser tratados da mesma forma” *. O recurso ao precedente e o costume não são mais do que aplicações dessa regra e correspondem à crença de que é razoável reagir da mesma forma que anteriormente, em situações análogas, se não tivermos razões suficientemente fortes para o lamentar. Uma forma de agir será então injusta se se traduzir por um comportamento diferente face a duas situações semelhantes. Perelman dá-nos como exemplo de utilização argumentativa desta regra de justiça, uma breve passagem de um sermão de Demóstenes: “Pretenderão eles, por acaso, que uma convenção, se contrária à nossa cidade, seja válida, recusando-se, no entanto, a reconhecê-la se lhe servir de garantia? É isso o que vos parece justo?” **. Estas palavras de Demóstenes confirmam como importante instrumento de persuasão, o argumento de reciprocidade, que consiste na assimilação de dois seres ou duas situações, com o objectivo de mostrar que os termos correlativos numa relação devem ser tratados da mesma forma. Sabendo-se que em lógica formal, os termos a e b, antecedente e consequente de uma relação R, podem ser invertidos sem inconveniente, desde que tal relação seja simétrica, tudo o que é necessário fazer no campo argumentativo é mostrar que entre esses dois seres ou duas situações, há uma simetria essencial. Provada esta, torna-se possível aplicar o princípio da igualdade de tratamento. A regra de ouro, não faças aos outros o que não queres que te façam a ti é talvez a mais famosa aplicação da regra de justiça a situações que se pretendem simétricas. (...)

* Perelman, C., (1993), O Império Retórico, Porto: Edições ASA, p.84
* Ibid., p.85