31 março 2005

Coimbra é uma lição

O magnífico post "O NOME DAS COIMAS", de Pedro Caeiro, no Mar Salgado, para além de constituir uma verdadeira lição de direito administrativo, fez-me reviver a prova escrita que prestei na Faculdade de Direito de Coimbra, numa altura em que a "polícia de trânsito" se achava com competência para apreender as respectivas cartas de condução.

Era uma prática tão frequente que se tornou natural e, talvez por isso, quase ninguém ousava questionar a sua legitimidade. Quase, digo bem, porque quem já à época não se conformava com a medida era o douto professor Rogério Soares que um belo dia, para surpresa total dos seus alunos de direito administrativo, resolveu incluí-la num teste final da disciplina, logo no caso prático de maior pontuação.

Corrigido o teste e divulgados os resultados, verificou-se uma "razia" total nas notas: de largas dezenas de examinandos somente dois tinham conseguido positiva, por sinal, bem confortável. E eu, que fui sempre estudante-trabalhador, que não podia dar-me ao luxo de lutar por "grandes" notas, ali estava meio embasbacado, percorrendo a pauta com o olhar, várias vezes, de cima para baixo e de baixo para cima, ainda duvidando que fosse um desses dois. Mas era. Não tenho a menor dúvida de que foi, para mim, o melhor momento do curso.

É claro que já não sei que argumentos utilizei. Mas ainda me lembro das seis folhas que tive que escrever para, contra todas as aparências da altura, justificar a minha opinião de que só a um juiz deve ser reconhecida a competência para ordenar a apreensão de uma carta de condução. E é curioso: foi-se esse tempo, mas a opinião mantém-se.

Vem tudo isto a propósito, afinal, de Pedro Caeiro considerar no seu post que as recentes alterações ao Código de Estrada aumentam o poder punitivo do Estado, quando, nomeadamente, atribuem a uma autoridade administrativa a "competência para a cassação da licença de condução". Igualmente certeiros e muito oportunos são os seus outros reparos. Veja-se, por exemplo, como denuncia a punição de "condutas com elevado grau de indeterminação (p. ex., praticar "quaisquer actos que sejam susceptíveis de prejudicar o exercício da condução com segurança"). Não há a menor dúvida: Coimbra continua a ser uma lição.

29 março 2005

A internet a sair-nos do corpo

Preparemo-nos: a internet vai sair-nos do corpo.

Segundo anuncia a Nippon Telegraph and Telephone Corporation (NTT) está para breve (2006) a criação da primeira rede de comunicações que usa o corpo humano como condutor de dados, graças a uma nova tecnologia ( RedTacton) que aproveita os campos elétricos existentes à superfície da pele, para transmitir informações à velocidade de 2 Megabits por segundo.

Diz Toshiaki Asahi, pesquisador da NTT que a nova maravilha irá permitir, por exemplo, que "alguém equipado com um sensor possa trocar dados com outra pessoa que carrega o mesmo instrumento, por meio de um simples aperto de mão”, assim como qualquer casal poderá perfeitamente "trocar arquivos de músicas e vídeos enquanto faz sexo (...)".

Eu não digo? Preparemo-nos...


Dica do gustavo lopes

28 março 2005

Crença & Estilo

"Ao ouvir isto, foi como se tivesse sido pessoalmente atingido por uma palavra profética, por um relâmpago de evidência espiritual. Pois claro! - saltei eu, interiormente (...)" - diz o Prof. Mário Pinto, neste seu artigo, no Público de hoje.

Tocado pelo estilo grandiloquente - a fazer lembrar as famosas hipotiposes (*) de Vieira - não resisti a interrogar-me: que coisa tão inaudita teria ouvido o professor, a ponto de lhe provocar toda esta iluminação e entusiasmo? A avaliar pelo "salto" (interior, bem sei) teria sido, pelo menos, algo de verdadeiramente surpreendente...

Fiquei, por isso, bastante desapontado, quando percebi que, afinal, a "efusiva" reacção do professor se ficou a dever apenas ao facto do cardeal patriarca D. José, em recente entrevista à Rádio Renascença, ter "contornado" a pergunta "qual é a qualidade que mais deseja para o próximo Santo Padre?" com a singela resposta: "que seja um grande crente".

Mas onde está a admiração? Não é isso que se espera (no caso) de todos os católicos? Com o devido respeito, tenho, aliás, sérias dúvidas de que a um bom Papa baste ser "um grande crente". Mas isso já é outro assunto. O que por agora pretendo sublinhar é que, quando as palavras se mostram francamente excessivas em relação aos factos que descrevem, não há estilo (nem crença) que nos salve e o efeito no leitor... vira-se do avesso.


(*) HIPOTIPOSE: figura de retórica que consiste em expor as coisas de maneira tal que as situações ou os factos descritos parecem desenrolar-se sob os nossos olhos.

27 março 2005

Jazz: um achado

Já nem sei como fui ter aqui. Mas que para o amador de jazz é um achado, lá isso é. Basta um primeiro "click". O segundo, será irresistível. Boa audição.

25 março 2005

Excertos de um livro não anunciado (225)

Temos então uma razão e um discurso pensados a partir da questão do ser, no pressuposto de que dizer é dizer o que é. A retórica trata do que é mas poderia ter sido de outro modo. Sendo assim, o tempo assume uma importância fundamental na criação das próprias alternativas, além de permitir uma caracterização complementar de cada género. O passado define o género judiciário, na medida em que este respeita a factos ou actos que poderiam ter ocorrido de outra maneira. O presente é o tempo do género epidíctico, que se reporta ao que existe (um elogio, uma censura...) mas que poderia ser diferente. Por último, é o futuro que está em causa no género deliberativo, seja através de uma acção política, seja por uma qualquer decisão a tomar.

21 março 2005

Big-Brother dentro e fora da blogosfera

No México, 12 fotobloggers resolveram mostrar fotos da sua vida diária, bem ao estilo do Big-Brother. Fazem-no através de um fotoblogue colectivo e, pelos vistos, sem restrições, sem guiões ou censura.

Anunciado como o primeiro Reality Show da Blogosfera, este Big-Blogger (assim é designado) possui o seu próprio sistema de regras e vai já na segunda série (sendo que cada série dura 4 meses).

Por agora, a iniciativa limita-se às fotos que cada participante vai transferindo do seu telemóvel para o fotoblogue, mas com o avanço para os aparelhos de 3.ª geração, é de prever que, muito em breve, as fotos sejam substituídas por vídeos, o que lhe conferirá, se não maior animação, pelo menos, mais realismo. Curioso é o comentário de um anónimo leitor do jornal "20 minutos.as" (edição digital de 2005.02.09):


La gente tendra que acostumbrarse a vivir en un gran hermano donde cualquier cosa que agan pueda ser captada por una camara, y esa imagen colgada en internet. No solo son los moviles, las camaras digitales cada vez son mas pequeñas y baratas, hacer una foto con ellas no cuesta nada. Cada vez que sales a la calle te graban desde cajeros, camaras policiales, de comercios, videoaficionados, periodistas etc etc etc. La unica forma de proteger eficazmente tu imagen es ponerte un burka y no salir sin el a la calle.

Dá que pensar. Pode-se discordar deste aparente conformismo perante as crescentes ameaças à privacidade de cada um. Mas que há muito deixamos de ter o controlo sobre a nossa própria imagem, isso parece irrecusável. Basta pensar no universo de gravadores de vídeo-vigilância em que todos somos diariamente "apanhados" sem nunca sabermos em que mãos vão parar tais imagens ou o destino que lhes estará reservado. Seria por isso desejável que, em tempos de "choque tecnológico", o governo criasse um apertado mecanismo de controlo à realização e ao uso de tais gravações.

20 março 2005

O calvário de Ana

Ana Sousa Dias continua o seu calvário nas escolhas do Professor Marcelo. Sempre em esforço, sem a naturalidade e a descontração a que nos habituou na 2:, parece "metida à força" num figurino que lhe desbarata o reconhecido talento. É, realmente, uma pena.

O "despiste" das auto-estradas

Tenho estranhado que nenhuma voz se levante contra a intervenção pública do Governador do Banco de Portugal, Vítor Constâncio, durante a qual este anunciou ao país o modo concreto como o Governo deve agir para financiar o custo das auto-estradas.

É certo que li alguns comentários quanto ao acerto ou desacerto da preconizada medida (que, aliás, implicando o recurso a mais impostos, parece tudo menos original), mas creio que terá passado quase em claro o facto do anúncio se traduzir numa despropositada interferência na esfera de acção do Governo recém eleito, condicionando-o ou preparando-lhe o terreno, vá-se lá agora saber.

Em qualquer das hipóteses, convenhamos que, desta vez, Vitor Constâncio não esteve bem. "Despistou-se" nas auto-estradas, foi o que foi. Merecidas, por isso mesmo, as críticas que o Professor Marcelo lhe dirigiu nas suas "escolhas" de hoje.

19 março 2005

A misteriosa mão

SIC Notícias, hoje à tarde. Assembleia da Republica. Dois deputados, Manuel Alegre e Miguel Tiago, respondendo a algumas perguntas mais do que banais de uma jornalista. Entretanto, percebe-se que alguém deu a esta última indicação para "sair de cena". Tudo muito artificial, um grande "pastelão". Ficam apenas os dois deputados a andar vagarosamente enquanto falam. A sensação é a de que o "cameraman" obriga os deputados e a própria entrevistadora a mudarem constantemente de posição, na procura do enquadramento ideal que tarda em surgir. Até que a coisa torna-se mesmo caricata, com os deputados a não saberem já se devem prestar mais atenção aonde põem os pés ou àquilo que estão a dizer.

Mas faltava o remate final: quando a jornalista se reaproxima dos deputados vê-se uma misteriosa mão a puxá-la pelo ombro novamente para fora. A jornalista ainda esboçou alguma resistência, tentando "ficar no boneco" mas a superior exigência estética do "cameraman" não lho terá consentido. Que coisa mais ridícula. Só visto.

Prazer em conhecê-lo

Acabo de ver o João Morgado Fernandes (de gravata e tudo...) na SIC Notícias, a comentar as sondagens sobre alguns dos possíveis canditatos às autárquicas. Esteve muito bem, tão à vontade na TV como no blogue. Já agora, João... prazer em conhecê-lo.

18 março 2005

Pague a opinião e leve a notícia de graça

A ideia vem de Espanha onde a edição digital do jornal La Razón está já a ser comercializada segundo o regime de informação grátis, opinião paga, ou seja, exactamente o inverso do que sucede no El País, onde a informação tem que ser paga e os artigos de opinião é que são de acesso gratuito.

Em e-periodistas.weblog, Ramón Salaverría, professor de jornalismo, comenta a inovação no seu post El precio de la opinión (27 Janeiro 2005), onde não esconde um vincado desalento: "Poco parecen importar ya los datos; ahora sólo interesan las opiniones. Todo un síntoma de los males que aquejan al periodismo español de hoy". Parece-me, contudo, haver aqui um duplo equívoco.

O primeiro, residirá na implícita ideia de que a notícia (dados, factos, acontecimentos) disfruta de supremacia jornalística sobre a opinião, o que é falso. Se a notícia, por definição, não contém opinião, já na opinião é quase sempre impossível emitir um juízo sem especificar os factos que estão a ser avaliados, que o mesmo é dizer, sem incorporar a notícia. Logo, a existir supremacia jornalística seria na opinião e não na notícia. Quanto à (falsa) questão da "objectividade da notícia" e da "subjectividade da opinião" estamos conversados: nesta matéria, tudo quanto há para dizer é que na notícia, como na opinião, só um idêntico esforço de objectividade favorece a respectiva intercompreensão.

Como segundo equívoco temos que, do facto do La Razón decidir fazer pagar a opinião em vez da informação (ou notícia), não se segue que "Poco parecen importar ya los datos; ahora sólo interesan las opiniones". Para que a decisão do La Razón faça todo o sentido, basta, por exemplo, que publique uma opinião singular e exclusiva, enquanto que as suas notícias possam ser lidas igualmente em muitos outros meios de informação. Como é lógico, pagamos mais pelo que é raro ou único, independentemente do valor intrínseco do próprio bem. Só assim se compreende que ainda não paguemos nada pelo ar que respiramos, apesar da importãncia vital de que se reveste para a nossa própria sobrevivência.

Eis porque não posso deixar de concordar com parte da apreciação que uma leitora deixou na caixa de comentários do Professor Ramón: "a mí me parece que el acceso a la información está al alcance de cualquiera de manera gratuita; si no es en un medio, en otro. Todos no son iguales a la hora de tratarla, está claro, pero más o menos se puede uno enterar de lo que pasa en el mundo sin pagar un duro. En cuanto a las opiniones, es ya otro cantar. Uno puede sintonizar más o menos con un articulista y gustar de leer su opinión, y la visión concreta de ese autor no la va a encontrar en los demás medios". Tão simples como isso. Aliás, num mundo em que o espaço e o tempo se comprimem como nunca e a realidade nos é transmitida, cada vez mais, "em directo", é muito provável que o futuro do jornalismo venha a passar mais pela opinião do que pela notícia, mais pela interpretação do que pelos puros factos, mais pelo significado ou sentido do que pelo dados em bruto. E, como diria Pacheco Pereira, já não faltam os sinais.

15 março 2005

Excertos de um livro não anunciado (224)

De qualquer modo, a proposição não é a unidade e ainda menos a medida do pensamento - lembra Meyer. Se a razão e o discurso sustentam o contraditório da retórica é porque já incorporam o problema ou a questão pois “(...) a retórica não fala de uma tese, de uma resposta-premissa que não responde a nada, mas da problematicidade que afecta a condição humana, tanto nas suas paixões como na sua razão e no seu discurso” (*). Mas é sobretudo através da crítica que faz à classificação aristotélica dos géneros oratórios, que Meyer parece conferir maior visibilidade à sua teoria da interrogatividade retórica. Recorde-se que Aristóteles procede à classificação dos géneros oratórios segundo o bem que em cada um deles se pretende realizar. Por isso associa o útil ao género deliberativo, o justo ao género judiciário e o belo, elogioso ou honroso, ao género epidíctico. Descobre-se aqui com toda a nitidez uma preferência por um critério ontológico de classificação dos géneros oratórios. Como Meyer bem salienta, “Aristóteles parte do princípio de que é nas brechas da ontologia que se joga a emergência dos géneros” (**)

(*) Meyer, M., (1998), Questões de retórica: linguagem, razão e sedução, Lisboa: Edições 70, Lda., p. 31
(**) Ibidem

12 março 2005

Covilhã: novo reforço virtual

A Covilhã ganha uma nova representação na blogosfera com o aparecimento do blogue Baleia Branca. É uma excelente notícia, principalmente se atendermos à qualificaão pessoal e académica do seu autor, o João Correia, da UBI, a quem desejo, desde já, uma longa e frutuosa estadia virtual.

08 março 2005

Pagar impostos para ganhar um carro...


"Não vendemos carros, vendemos impostos" *

Paulo Cabrita, presidente da Mitsubishi Portugal, criticando o nosso quadro fiscal.

in Expresso de 5 de Março 2005

* Diz o presidente da Mitsubishi Portugal que o comprador de um Mitsubishi Pajero 3,2 litros paga tanto de impostos como o valor da viatura.

Por este andar - e com a subida já dada como inevitável por Campos e Cunha - qualquer dia ainda vamos ter que comprar impostos só para ganhar um carro, de brinde...

07 março 2005

O segredo de Sócrates

Já foi devidamente sublinhado o invulgar secretismo com que Sócrates procedeu à formação do novo governo. E nunca será demais louvar o método e a performance. Mas não é estranho que tal ocorra justamente num período em que, querendo, os "media" tudo parecem desvendar? Será que desta feita não quiseram? A conferir depois da tomada de posse do Executivo.

O jornalismo sério agradece

Só agora li, mas não resisto a comentar:

Num primeiro balanço, Ana Sousa Dias não partilha, pessoalmente, a satisfação de Marcelo. Ainda não reviu a emissão mas sente que não é assim que deve fazer: "Tenho que encontrar o tom." Apesar de saber que foi a estreia e que o programa tem que ser afinado, é peremptória: "Se ao fim de dez não tiver encontrado o tom, vou-me embora."

in DN, edição de 2005.03.01


Estas palavras de Ana Sousa Dias já não se usam (infelizmente). O que está na moda, é encobrir, disfarçar ou desvalorizar o que não correu bem, ou pelo menos, que não correu tão bem como se esperava. Mas Ana Sousa Dias, que já me habituara a admirar pelas suas notáveis entrevistas, reconhece (e confessa) que também não ficou satisfeita com a sua participação no primeiro programa do Professor Marcelo. E, sem subterfúgios, anuncia que, ou encontra o "tom" ou vai-se embora.

Tenho pena de não ter visto ontem o segundo programa para conferir as eventuais alterações. Mas nem é isso que quero aqui destacar. O que aqui quero destacar é que, com este seu gesto, a Ana Sousa Dias só reforçou a sua credibilidade pessoal e profissional. O jornalismo sério, agradece. Muito.

06 março 2005

Excertos de um livro não anunciado (223)

Para Aristóteles, com efeito, “a interrogação dialéctica, longe de ser um verdadeiro processo de questionamento, é na realidade a colocação à prova de uma tese provável para toda a gente, para a maioria, ou para os sábios” (*). Segundo o velho filósofo não nos interrogamos sobre o problemático: apenas discutimos teses opostas. Uma vez obtida a respectiva adesão, a tese aprovada ou escolhida constituir-se-ia como resposta ou afirmação exclusiva. O termo do processo retórico ficaria a assinalar igualmente o fim de toda a problematicidade ou alternativa. “Parece mesmo que o ideal proposicional se perpetua. Trata-se de chegar, tanto quanto possível, a uma proposição que exclua o seu contrário, esperando que a ciência possa decidir apodicticamente, quer dizer, com toda a precisão. Não é portanto o problemático que é preciso conceptualizar, mas as respostas que não o são e que gostaríamos muito que o fossem. A retórica seria como que um paliativo da lógica, aquilo que, à falta de melhor, utilizamos para responder com probabilidade, quer dizer, como verdade exclusiva, proposicional. É uma solução de expectativa. Mas se pretendermos julgar os problemas da lógica pela medida daquilo que impede de os tratar como problemas, como alternativas, com A e não-A como co-presentes, talvez nos arrisquemos a condenar a retórica uma vez mais medindo-a por aquilo que ela não é e em relação ao qual é nitidamente inferior nos seus resultados. O que será mais eficaz para afirmar uma proposição do que a lógica, que conclui com toda a precisão?” (**).

(*) Meyer, M., (1998), Questões de retórica: linguagem, razão e sedução, Lisboa: Edições 70, Lda., p. 29
(**) Idem

04 março 2005

Malditos sejam

quem descortine uma estreita ligação entre a escolha de Freitas do Amaral para ministro dos negócios estrangeiros e o apoio político-eleitoral que o escolhido deu a Sócrates. Mas é preciso ser muito maldoso para suspeitar, sequer, de uma coisa dessas. Por mim, que sou a bondade em pessoa, estou convencido que o Prof. Freitas do Amaral manifestou o seu apoio ao Partido Socialista de forma absolutamente desinteressada.

Quem sabe até se com esta "cambalhota ideológica" não quis pôr um ponto final na sua carreira política? Sabe-se como, noutras circunstâncias, entrar em tão frontal contradição com o que foi o ideário de uma vida pode acarretar a total perda de credibilidade. Basta imaginar como passaria a ser encarado Mário Soares se, nestas mesmas eleições, tivesse publicamente declarado o seu apoio à democracia-cristã.

Estou por isso convencido que, quaisquer que tenham sido as suas mais íntimas motivações, Freitas agiu por imperativo de consciência, sem qualquer expectativa de vir a colher dividendos políticos. E muito menos terá representado a menor possibilidade de integrar um governo do PS. Sócrates é que não percebeu a pureza das suas intenções e nomeou-o ministro. Sem jogadas de poder, sem trocas de favor, sem prévia combinação. A escolha do "socialista" Freitas do Amaral não terá passado, pois, de uma infeliz coincidência que só abre a porta à maldosa especulação. Dos jornalistas. Dos comentadores. Dos cidadãos. Do país, afinal. Malditos sejam.

Blasfema saudação

O Blasfémias, responsável por algumas das minhas mais proveitosas incursões blogosféricas, completa um ano. Parabéns e... obrigado.

02 março 2005

Por exemplo no futebol

Ao princípio da noite, de regresso a casa, a certa altura escuto na rádio: "confesso que não consigo ser isento quando joga o meu clube". Logo percebi que se tratava de mais uma edição do programa Bancada Central, de Fernando Correia, na TSF.

Era um ouvinte, apaixonado por futebol, perdão, apaixonado pelo seu clube (porque cada vez mais o futebol parece ser apenas um pretexto para chegar aos estados de alma da clubite), insurgindo-se contra o senhor Jorge Coroado (ex-árbitro de futebol) que terá dito na televisão que foi falta (não percebi contra quem), vindo no dia seguinte a negá-la, num jornal (ou vice versa, também já nem sei nem interessa). Só sei que o exaltado ouvinte repetia com veemência: "ele que se assuma como benfiquista que é... qual é o problema? Ele que se assuma como benfiquista em vez de se armar em isento. Eu também não consigo ser isento quando joga o meu clube, não consigo, pronto."

Nessa altura, senti que "desliguei". O ouvinte continuava a falar, cada vez com mais exaltação ou entusiamo, mas eu já não o ouvia pois ficara apenas a repetir de mim para mim as palavras que ele usara para exprimir uma tão resignada confissão: "Eu também não consigo ser isento quando joga o meu clube, não consigo, pronto"..."Eu também não consigo ser isento quando joga o meu clube, não consigo, pronto"..."Eu também não consigo ser isento quando joga o meu clube, não consigo, pronto"...

É que se há coisa que realmente me impressiona é este tom de fatalismo da falta de isenção seja no que for, por exemplo, no futebol. Mas também na política, nos negócios e na conversação em geral. Quando penso em alguém que se conforma com a sua própria falta de isenção tenho dificuldade em evitar um pré-juízo de desvalor. Claro que é muito difícil ser isento. Claro que, provavelmente, nenhum de nós é tão isento como pensa ser. Claro que a falta de isenção espreita cada uma das nossas preferências, interesses ou meros desejos. Não podemos, por isso, idealizar excessivamente a isenção. Como a verdade, ela é também uma meta, uma referência da qual nos procuramos aproximar o mais possível. Apenas isso, mas seguramente isso, no mínimo.

Tenho muitas dúvidas sobre as virtudes da paixão bruta. Minto. Tenho poucas, muito poucas dúvidas mesmo. Posso até afirmar que não conheço nenhum desfecho feliz de uma paixão bruta, incontrolada, daquele tipo de paixões que deixam a pessoa "fora de si". E só uma descontrolada paixão leva a que alguém não consiga (ou desista de) ser isento (outra coisa é o nao querer sê-lo).


Mas é natural que uma pessoa se apaixone a tal ponto que, em certas situações, deixe de ser isenta. O que já não parece aceitável é que se transforme a momentânea impossibilidade de atingir determinado objectivo específico (isenção) numa constitucional incapacidade (de ser isento). O que não é de admitir é que se valorize a recreativa paixão clubista acima de um ético esforço de isenção. Porque a falta de isenção é sempre uma falta desta última, que devendo lá estar e não estando, se traduz no desrespeito pelo outro. Logo, nem a paixão serve de desculpa para não ser isento, nem a falta de isenção e a cegueira analítica funcionam como atestado de amor clubista. Aliás, como poderia um adepto afirmar a superioridade do seu clube, começando, logo à partida, por confessar que não consegue ser isento?