30 junho 2005

Eu é que sou o Presidente...

"Ninguém tem a mais pequena legitimidade para invocar o que quer que seja do pensamento do Presidente da República sobre esta matéria. Esse pensamento é meu e não vou partilhá-lo com rigorosamente ninguém."

in Diário de Notícias, 29 Junho 2005


Há quem pense que estes "recados" sem destinatário a que o Presidente da Republica já nos habituou são totalmente despropositados ou mesmo ridículos. E, de facto, é um pouco estranho que quem detém os mais altos poderes, passe a vida a anunciá-los na praça pública em vez de os exercer na hora própria e com a devida discrição.

28 junho 2005

Telepac: um choque tecnológico

São duas as empresas que, há muito, me ligam à internet: a Telepac (em casa) e a NetCabo (no local de trabalho). Da primeira sou cliente-pioneiro; à segunda também aderi logo após o seu aparecimento. E, de um modo geral posso dizer que a ligação, propriamente dita, tem corrido bem em ambos os casos, exceptuando umas quantas arreliadoras quebras de serviço por parte da Telepac e alguma lentidão do lado da NetCabo, especialmente a certas horas do dia. Agora que estou a escrever isto, mal comparado, sinto-me como aquele segurado que diz muito bem da sua companhia de seguros e que perguntado sobre o que o leva a pensar assim, dispara que já é segurado "deles" há uma data de anos e que nunca lhe criaram problemas. O coitado nem se dá conta de que em todos esses anos nunca participou qualquer acidente...

Mas quis o destino que num intervalo de apenas 24 horas, ficasse subitamente privado das duas ligações. Foi, até hoje, o único "choque tecnológico" que presenciei e, devo dizer que não lhe achei graça nenhuma. Permitiu-me, no entanto, comparar o serviço de assistência de cada uma das empresas com base na dupla aventura que sumarissimamente passo a descrever.


Na Telepac:

Depois de sucessivos contactos telefónicos durante os quais fui atendido, em média, por sete operadores diferentes que ficavam a passar a chamada de uns para os outros com o argumento de que para resolver o meu problema tinham que passar a uma "segunda linha específica", fui finalmente aconselhado a enviar (pelo correio) o meu modem para os Serviços Técnicos da Telepac e a ficar a aguardar indicações. Hoje os CTT's deixaram-me em casa um novo modem sem qualquer indicação do que se terá passado. Já instalei o aparelho e parece-me que o problema da falta de acesso continua. Mas isso agora já nem me "dói" tanto pois a longa e penosa espera como que me anestiou. E não era para menos pois estou nisto desde o passado dia 11. Há, portanto, 17 dias que a Telepac me mantém "fora de serviço", tratando-me sempre como se eu estivesse do outro lado do mundo, fisicamente inacessível ou como se fosse economicamente incomportável mandar cá a casa um técnico que resolvesse o problema de uma vez. Daí que chegue até a duvidar que a Telepac exista. Mas deve existir, sim, porque vejo a sua publicidade por todo o lado. Quer dizer, não vejo o serviço mas vejo a publicidade que lhe é feita. Ou é de mim, ou a empresa desmaterializou-se a tal ponto no virtual que os clientes já não conseguem pôr-lhe a vista em cima. Parece-me justo, por isso, que, se continuar assim, mais tarde ou mais cedo, seja a própria Telepac a não descortinar os seus ex-clientes.


Na NetCabo:

Apesar do meu primeiro telefonema a dar conta da falta de acesso, ter ocorrido ao cair da noite de uma sexta-feira, foi-me imediatamente garantido que na manhã seguinte, sábado, seria procurado por um técnico da empresa para me solucionar o problema, in loco. Querem saber a verdade? Nem acreditei. Mas na manhã seguinte, com efeito, lá estava o técnico em carne e osso, tentando detectar a anomalia. Que não, que afinal não era do modem, nem de qualquer outro acessório ou parte da instalação. A causa era exterior ao próprio prédio. Daí que lamentava mas nada podia fazer. Restava-lhe comunicar aos respectivos serviços centrais da NetCabo para iniciarem a pesquisa da avaria na rua. Pensei para mim que já tinha visto aquele "filme". Mas uma hora depois telefona-me alguém da NetCabo-Lisboa, a perguntar como tinha corrido a visita do técnico. Expliquei o que se passara e, ao contrário do que sucedera na Telepac, logo percebi no meu anónimo interlocutor, um real interesse em eliminar ou, pelo menos, atenuar o meu descontentamento. "E ele não o deixou com os serviços mínimos?" Serviços mínimos? - o que é isso, perguntei. "É um sinal fraco mas suficiente para aceder à internet enquanto não reparamos totalmente a avaria". Ah... não, não, continuo mesmo sem acesso. "Então fique tranquilo que o técnico vai voltar aí ainda hoje". Quem voltou a duvidar da fartura fui eu. Mas arrependi-me pouco depois, quando o representante da NetCabo voltou, de facto, e me repôs o acesso nos limites dos tais "serviços mínimos". Eu nem simpatizava por aí além com a NetCabo, não me perguntem porquê. Nem eu sei. O que eu sei, hoje, de fonte segura, é que das duas citadas empresas só a NetCabo se preocupou com os meus direitos.

Excerto de um livro não anunciado (243)

A interrogatividade de que nos fala Meyer é a que se expressa no confronto de teses opostas submetidas a um regime dialógico de explicitação que visa gerar o consenso sobre a escolha preferível. Logo, a questão de saber se a argumentação em causa se dirige para a verdade ou para o engano, remete-nos, antes de tudo, para a necessidade de detectar quais são as verdadeiras intenções que animam os participantes. É essa necessidade que leva Perelman a ver na distinção aristotélica das argumentações erísticas, críticas e dialécticas, três tipos de critérios que nos podem ajudar a avaliar os debates e as conclusões que deles resultaram. Trata-se de uma distinção que tem por base as diferentes atitudes ou motivos que animam os interlocutores. Assim, em primeiro lugar, poderemos considerar o chamado diálogo erístico, que é aquele em que a única intenção é o desejo de vencer, de vergar o adversário ao peso do ponto de vista pessoal do orador. Um segundo tipo de diálogo é o diálogo crítico, aquele em que se visa submeter uma tese a um autêntico teste, tentando mostrar a sua incompatibilidade com as outras teses já anteriormente aceites pela mesma pessoa. Por último, temos o diálogo dialéctico quando os interlocutores, para além da coerência interna dos discursos, procuram também chegar a um consenso sobre as opiniões que reconhecem como mais sólidas ou preferíveis.

Claro como água

Sejamos claros. A estratégia de Sócrates nada tem de inovadora. Sucessivos primeiros-ministros têm adoptado a mesma estratégia, i.e. tomar a iniciativa de marcar a agenda, evitando assim que outros o façam por si. O que tem variado, consoante o primeiro-ministro, é o estilo e o contexto. Inevitavelmente, o contexto acabará por se alterar, os portugueses começarão a embirrar com o estilo e a estratégia deixará de surtir efeito.

in BLOGUITICA, de Paulo Gorjão (Post 738)

27 junho 2005

Trabalhos forçados

Esfolar um "coelho" por dia - eis o tipo de "coisas temíveis" a que certas pessoas ainda se sujeitam para ganhar a vida. Ou a provação-mor de um verdadeiro estóico.

26 junho 2005

A (in)segurança do aeródromo de Espinho

Num país onde por muito discutíveis ou mal explicadas razões se embarga uma obra tão importante como esta, como é possível autorizar e permitir (já lá vão algumas décadas) que as pistas do aeródromo de Espinho sejam literalmente atravessadas por uma estrada aberta à circulação automóvel?

Devo dizer que há vinte anos atrás percorri essa estrada pela primeira vez e logo fiquei estupefacto por, a certa altura, me dar conta de que estava a atravessar livremente um aeródromo. Tudo o que havia no local era uma placa estática com um aviso mais ou menos equivalente ao "Pare, Escute e Olhe" muito vulgarizado pelos Caminhos de Ferro. E nada mais. Por mera casualidade, passei por lá, de novo, há pouco mais de um mês e verifiquei, para meu espanto, que a situação continua rigorosamente igual.

Neste quadro, pode dizer-se que a segurança de cada condutor fica "nas mãos" dos pilotos das avionetas e estes, por sua vez, sujeitam-se ao maior ou menor grau de sensibilidade ao risco por parte de cada condutor que atravesse o aeródromo. Imagino, por isso, que o dia a dia naquelas imediações se assemelhe a um verdadeiro e leviano jogo de sorte e de azar que, por certo, nem os automobilistas nem os pilotos gostariam de ter de jogar.

Hoje o jogo foi de azar, de muito azar mesmo. Ao cair da noite, choque brutal de uma avioneta contra um carro que circulava pela insólita estrada. Morreu o condutor, carbonizado no interior do veículo. Ficou gravemente ferido o piloto da avioneta. E tudo porque a grosseira desatenção das entidades a quem cabe a prevenção e segurança do aeródromo e da fatídica estrada, fez impender sobre condutor e piloto um daqueles riscos que manifestamente, não vale a pena correr. O mínimo que agora se exije é, portanto, apurar as responsabilidades e corrigir o erro. Imediatamente.

A Lenda do Galo de Barcelos

Ao Domingo, ir almoçar ao Bagoeira Restaurante, em Barcelos, é um dos meus trunfos para não ter que enganar a fome enquanto aguardo na fila por uma mesa livre. No Bagoeira nunca precisei de me sujeitar a esse arreliador compasso de espera. São nove salas onde sempre se arranja lugar para mais um (ou para mais alguns) e uma excelente cozinha que se mantém aberta para além do horário normal das refeições. Uma preciosidade.

Hoje voltei lá. Escolhi o seu afamado polvo assado na brasa que estava, como sempre, a preceito. Mas não é ao meu almoço que me quero referir. Quero, isso sim, registar o facto deste conhecido restaurante ter tomado a iniciativa de inscrever nos seus próprios "cartões de visita" a famosa Lenda do Galo de Barcelos que, para quem ainda não a conheça, passo a transcrever:

LENDA DO GALO DE BARCELOS

Num banquete dado por um rico proprietário de Barcelos, foi roubada uma peça valiosa de prata e um dos convidados foi acusado do crime. Foi julgado e culpado pelo tribunal. Apesar das provas evidentes contra ele, reclamou sempre a sua inocência. O Magistrado deu ao acusado uma última oportunidade de se justificar. Vendo um galo cozinhado dentro de um cesto perto dele, disse: "Se eu estiver inocente este galo cantará". Para espanto de todos o galo cantou e o prisioneiro foi libertado.

Muito interessante, não? Que bom seria se a verdade tivesse todo este poder mágico...

Excerto de um livro não anunciado (242)

Meyer fornece-nos o método: “Para se compreender a essência do pensamento, importa portanto restabelecer sempre a diferença pergunta-resposta, aquilo a que eu chamei a diferença problematológica. Tendo em conta esta diferença, podemos então distinguir dois tipos de uso retórico: aquele que é crítico e lúcido sobre os procedimentos de discurso, e aquele que visa ofuscar o interlocutor, ou em todo o caso adormecê-lo” (*). Teremos assim uma retórica branca que, não suprimindo a interrogatividade nas suas respostas nem escondendo a raiz problemática destas últimas, é, por um lado, lugar de discutibilidade e afirmação do sentido crítico dos que nela participam e, por outro, um modelo aferidor dos usos retóricos abusivos. Uma retórica branca que inclui o estudo da retórica e do seu uso, já que na “(...) negociação da distância entre os questionadores, analisa-se a relação questão-resposta porque surge colocada em prática, mesmo implicitamente. Mas a retórica branca debruça-se também sobre a maneira como esta interrogatividade está implicada no responder que se ignora mais ou menos como tal, que é mais ou menos manipulador e ideológico, e que recalca a interrogação para ‘passar’ junto daquele a quem se dirige (...)” (**).

(*) Meyer, M., (1998), Questões de retórica: linguagem, razão e sedução, Lisboa: Edições 70, Lda., p. 47
(**) Idem

25 junho 2005

Serviços mínimos

Agora que esta expressão está na moda (*) a ela recorro também para designar o actual estado do Retórica e Persuasão que teve, como já repararam, um estranho presente de aniversário: o "descomando" do anterior template no que toca à localização dos posts. Nada como aproveitar a ocasião para iniciar o terceiro ano com nova cara (template).

(*) É verdade. Até já no serviço de atendimento a clientes da NetCabo me falaram em..."serviços mínimos" que é qualquer coisa assim como um "sinal" muito fraquinho mas que vai dando para ver os emails, fazer umas pesquisas na web, etc., enquanto não conseguem restabelecer o sinal em toda a sua potência normal. Que chique, serviços mínimos...

24 junho 2005

A "quadra" de S. João, no Porto

Uma vez mais o Jornal de Notícias organizou o já famoso Concurso de Quadras de S. João, meritória iniciativa que além de constituir soberana oportunidade para a revelação dos nossos melhores poetas populares, igualmente afirma e perpetua os tão característicos festejos do S. João à moda do Porto. Este ano o meu destaque vai para as três quadras seguintes:


1.º PRÉMIO

Fogueiras de amor, já fiz
Mas ocultei-lhes a chama
A alma ama mas não diz
A boca diz mas não ama


Amante Secreto

***

4.º PRÉMIO

Quando saltas tão ousada
Perna ao léu sobre a fogueira
Fosse eu pedra da calçada
P'ra te ver doutra maneira

Arlequim

***

6.º PRÉMIO

Alho, cidreira, orvalhada
Fogueira, rusga, balão;
Trevo, cascata, noitada
Porto, povo, São João!

Palavras

E... para o ano há mais. Parabéns ao JN.

E enquanto o Blogger não resolve este problema da fuga dos posts, a solução é colocar todo o comentário no título. Originalidades blogosféricas...

Reparo agora que também o Avatares está com este mesmo problema dos posts que fogem lá para baixo. Bem haja quem nos acudir...

Hoje: 2 anos de Retórica

23 junho 2005

O lado erístico da argumentação

"No âmago disto tudo está, parece-me, a decandência do debate intelectual, em particular, a valorização que se dá à provocação. Provocar é, desde há uns tempos, considerado como uma forma elevada de debate. A provocação, deixem-me dizer, é a mais baixa forma de discussão, pois faz depender o prosseguimento de um argumento não do seu mérito ou valor intrínseco mas do efeito primário que se sabe que determinada afirmação terá no interlocutor, por fraqueza específica, particular, deste. Uma provocação é eficaz, portanto, não porque é inteligente ou pertinente no ambito do tema que se está a discutir, mas simplemente por ferir o advesário no seu ponto irracional mais fraco. A provocação tem por objectivo obrigar o outro a responder-nos directamente, pelo caminho que nós indicámos e que supostamente nos interessa, não a discutir o problema que está em cima da mesa pelos múltiplos caminhos que se nos deparam, que são não só os nossos mas também os da pessoa que está à nossa frente. Esta forma de fascismo argumentativo está hoje em dia elevado à forma de arte, e não estou a estou a ver enfraquecer, muito pelo contrário."

in A CAUSA FOI MODIFICADA, post "Tiago Monteiro", 21.06.2005

Excertos de um livro não anunciado (241)

Tomando por base as críticas que Platão fazia aos poetas e sofistas do seu tempo (*), por se empenharem em fazer passar como verdadeiros discursos desprovidos de qualquer verdade ou até verosimelhança, que apresentavam como solução aquilo que permanecia um problema, Meyer identifica tais práticas com uma ostensiva redução ou mesmo anulação de toda a interrogatividade discursiva. A origem da manipulação retórica consistirá por isso, basicamente, numa deliberada confusão entre a resposta e a questão, com o fim de fazer tomar por concludente e razoável o que, na realidade, permanece problemático. O grande alcance desta intuição de Meyer é o de nos fornecer um critério relativamente expedito de distinguir os usos da retórica. Recordemos que à luz da teoria da interrogatividade, qualquer proposta ou tese em discussão se mantém mais ou menos incerta, pois é precisamente essa sua incerteza que justifica a necessidade de discussão. Aliás, nem mesmo depois de obtido o assentimento do auditório, essa maior ou menor incerteza desaparecerá totalmente, na medida em que qualquer escolha é sempre uma escolha provisória e o consenso que a torna possível, ao invés de lhe conferir uma evidência indiscutível ou certeza absoluta (que não possuía até aí), traduz antes o reconhecimento de uma problematicidade que nenhuma resposta esgotará, pois esta, obrigatoriamente situada no campo do preferível, sempre fica sujeita a um novo questionar e a sucessivos desenvolvimentos. É pois no seio desta questionação ou interrogatividade em contínuo de todo o discurso retórico que se pode descortinar de que lado está o orador: do lado da retórica negra, manipuladora, ou do lado da retórica branca, de uso crítico.

(*) Atente-se no violento ataque que Platão faz à retórica na sua obra Górgias, pp. 47-82

22 junho 2005

Dois anos depois

O Avatares continua um blogue de incomparável bom gosto, imaginação e criatividade, por obra e graça (leia-se, muito talento) do seu autor. Parabéns, Bruno.

20 junho 2005

Obra ou discurso?

No Público de ontem:

Rui Rio - Acho que um presidente de câmara, no primeiro mandato, ao segundo ano, se quiser, tem as eleições ganhas. Não faz nada de estrutural e que abane (...)

Público - O que fez de estrutural e que abanou?

Rui Rio - Diversas coisas, desde logo a relação com a comunicação social

Público - Mas isso é uma medida estrutural com interesse para a cidade?

Rui Rio - Também, também (...). Daí que eu tenha "má imprensa" (...) Há uma ruptura no discurso (...)

Está bem apanhada esta de Rui Rio considerar a relação que mantém com a comunicação social como uma das principais medidas estruturais que tomou durante o mandato que agora termina (repare-se que foi o primeiro exemplo que lhe veio à cabeça). Mas numa altura em que os munícipes portuenses avaliam a obra feita não será, no mínimo, estranho que o seu Presidente valorize mais o discurso?

19 junho 2005

Excertos de um livro não anunciado (240)

Ou seja, uma retórica só pode ser desacreditada por outra retórica. Talvez por isso a generalidade dos autores se venha referindo não apenas à sua face positiva, enquanto geradora de consensos que aproximam os homens e reforçam o pluralismo democrático mas também a uma importante acção negativa que se traduz na sua aptidão específica para desmontar argumentações de valor meramente aparente, duvidoso ou até propositadamente manipulado. Para Rui Grácio, por exemplo, os eventuais abusos de retórica são muito mais relativos à avaliação do humano do que à retórica, pois é justamente a competência retórico-argumentativa que deles nos pode prevenir (*). No mesmo sentido, se pronuncia Perelman quando, para sublinhar a dimensão crítica da retórica, afirma que “através do estudo dos procedimentos argumentativos, retóricos e dialécticos, é-nos possível aprender a distinguir os raciocínios aceitáveis dos raciocínios sofistas, os que procuram persuadir e convencer, dos que procuram enganar e induzir em erro” (**). Colocada assim a tónica na competência argumentativa como possibilidade de desmascarar a chamada retórica negra (sofística), impõe-se então retomar aqui a concepção interrogativa de Meyer, na medida em que, como já salientamos, ela pode proporcionar-nos um critério de distinção entre o uso e o abuso da retórica (***).

(*) Grácio, R., Introdução à tradução portuguesa, in Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993, p. 9
(**) Perelman, C., L’usage et l’abus des notions confuses, in Éthique et Droit, Éditions de l’Université de Bruxelles, 1990, p. 817
(***) Equivalente à diferença entre um uso crítico e um uso manipulador.

Retórica em Porto Alegre

Marcia Benetti Machado, Jornalista, de Porto Alegre, Brasil, elegeu o Retórica e Persuasão como um dos blogues em que "vale ciscar", concedendo-lhe um "link". E se neste mundo on-line "linkar" é sempre atribuir alguma preferência ou distinção ao "linkado", maior é a honraria quando parte de uma pessoa com este currículo profissional e académico. Parafraseando a própria Doutora Marcia, só me resta dizer: "piu".

18 junho 2005

A "desonestidade política"

Afinal, parece que Bagão e Sócrates estão bem um para o outro:

Um não revelou o défice que, diz agora, já conhecia.
O outro, fingiu nada saber de um défice que tinha obrigação de conhecer.

E para completar o ramalhete, vieram ambos falar da desonestidade política (dos outros), um "derivado" conceito de desonestidade sobre o qual, há já quase dois anos, aqui escrevi o seguinte:

Parece que virou moda: por dá cá aquela palha, no Parlamento ou fora dele - e com uma frequência que começa a ser preocupante - os deputados (ou alguns deputados) viram as costas aos argumentos e preferem acusar os seus interlocutores de desonestidade política. Repare-se que não se trata de uma verdadeira acusação pública de desonestidade. Nem pensar. Com o uso de tal expressão - defender-se-á o acusador - pretende-se tão somente exprimir a ideia de que o destinatário desse rótulo ou não cumpre o que prometeu, ou não é coerente com as convicções que publicamente defende ou não interpreta correctamente os anseios do povo, ou...ou...ou... qualquer outra coisa, que no fundo, se situará sempre no restrito âmbito da competência ou performance política e nunca na esfera da ética ou da moral. Ou seja, no vale-tudo em que está a transformar-se o combate políco-partidário no nosso país, recorre-se à acusação de desonestidade política para desse modo achincalhar o interlocutor e ferir a sua dignidade pessoal sem ter que prestar contas por tal ofensa. Porque, diga-se o que se disser, a qualificação da desonestidade como (apenas) política será sempre um mero artifício para fugir às responsabilidades do insulto, sem perder o impacto e a força persuasiva do mesmo. O resto é poeira para os nossos olhos. É que não há desonestidade política. Há apenas... desonestidade. A política não é uma gaveta à parte no armário da vida. Nenhum homem é um, fora da política, e outro, quando a ela recorre ou nela se envolve. (...) Que não haja, portanto, ilusões neste domínio: um sujeito que é desonesto na política é porque já o era antes, fora dela. Logo, a desonestidade política poderia ser tudo. Mas bem vistas as coisas e atento o seu uso corrente por parte de alguns dos nossos políticos, não é nada, afinal. Apenas mais uma retoriquice...

Já lá vão dois anos. E, por todas as razões, parece que foi ontem.

17 junho 2005

Os dois anos do Aviz

Parabéns ao Francisco pelos dois anos do seu excelente blogue. Dois anos é tempo. E do tempo à poesia há metade da vida para dizer.

Os anos desejados

Digo o nome do tempo, desesperadamente, do lado
íntimo do tempo, e recordo. Sento-me sobre os anos
em silêncio, nas curvas dos rios, entre canaviais,
enseadas solitárias, voos de patos brancos nas superfícies

das águas. Digo esse nome e é tudo o que ele deixou
em mim para prender a respiração à raiz dos
juncos. Acrescento imagens ao primeiro amor, ao
esquecimento - esse sinal do futuro. Mais tarde,

no entardecer ou depois dele, as lâminas abrem-se
à flor pacientemente colhida. Digo o nome do tempo
do lado oculto da frase, é um diálogo de amigos

esquecendo e lembrando para que nada se perca
entre os livros, os mapas, a viagem que atravessa a água
e traz consigo os primeiros ventos, tocando o rosto.

Francisco Viegas
in "Metade da Vida"

15 junho 2005

E daqui a duas semanas?

"Faria todo o sentido esquecer o referendo e abrir a questão do tratado a uma verdadeira discussão pública europeia" - escrevi aqui há duas semanas atrás, quando o Governo - a começar pelo Primeiro-Ministro - ainda se multiplicava em afirmações de fé no referendo, ao mesmo tempo que rejeitava todas as sugestões ou propostas de suspensão ou adiamento.

Hoje, finalmente, ficou-se a saber que
"o Governo português admitiu fazer uma «pausa para reflexão» no processo nacional de ratificação do Tratado Constitucional da União Europeia (...)"

Logo, ninguém nos garante que, daqui a duas semanas, o Governo ainda mantenha a mesma opinião...

14 junho 2005

Excertos de um livro não anunciado (239)

Significará isto que devemos considerar a retórica especialmente vulnerável à manipulação? Poderemos condená-la à partida por constituir um meio privilegiado de induzir ao engano? Parece que a resposta a tais questões só pode ser negativa. Em primeiro lugar, porque, como já vimos, o próprio Aristóteles viria a relativizar as graves acusações de Platão, transferindo-as da técnica retórica para a responsabilidade moral dos seus agentes. É o que faz quando, ao nível dos respectivos usos possíveis, compara a retórica a todos os outros bens, à excepção da virtude, especialmente com os mais úteis tais como o vigor, a saúde, a riqueza ou a capacidade militar: “com eles tanto poderiam obter-se os maiores benefícios, se usados com justiça como os maiores custos, se injustamente utilizados” (*). Depois, porque não podendo ficar imune a uma dada instrumentalização abusiva, a retórica contém no entanto em si própria o melhor antídoto para descobrir e desmascarar quem indevidamente dela se sirva.

(*) Aristóteles, (1998), Retórica, Madrid: Alianza Editorial, p. 51

11 junho 2005

Patriotismo & Moralidade, Lda. (2)

O Presidente da República, Jorge Sampaio, quer prestar todos os esclarecimentos relativos aos rendimentos de que aufere, a favor de uma «máxima transparência». O chefe de Estado reagiu assim à notícia de que acumula uma pensão relativa a 36 anos em que exerceu actividades como advogado com o vencimento inerente ao cargo que ocupa, publicada pelo Expresso esta sexta-feira.


Pode-se ainda falar de máxima transparência quando o esclarecimento chega com uma semana de atraso (*) e, aparentemente, só porque a notícia do Expresso tornou pública a acumulação de uma reforma com o actual vencimento?


(*) Sobre a data em que o Primeiro-Ministro anunciou que os funcionários públicos e os titulares de cargos políticos vão deixar de poder acumular vencimentos e pensões de reforma na íntegra.

10 junho 2005

Patriotismo & Moralidade, Lda (1)

(...) o primeiro-ministro anunciou que os funcionários públicos e os titulares de cargos políticos vão deixar de poder acumular vencimentos e pensões de reforma na íntegra, medida que foi aprovada esta semana em Conselho de Ministros. As novas regras não abrangem o Presidente da República.

As novas regras não abrangem o Presidente da República.
As novas regras não abrangem o Presidente da República.
As novas regras não abrangem o Presidente da República.
As novas regras não abrangem o Presidente da República.
As novas regras não abrangem o Presidente da República.
As novas regras não abrangem o Presidente da República.
.......................................................

Os alinhados (discursos)

À repórter da TSF, Sócrates diz que considera o discurso de hoje do Sr. Presidente da Republica muito alinhado com o discurso do Governo. Opinião insuspeita, não é?

09 junho 2005

Excertos de um livro não anunciado (238)

Significará isto que devemos considerar a retórica especialmente vulnerável à manipulação? Poderemos condená-la à partida por constituir um meio privilegiado de induzir ao engano? Parece que a resposta a tais questões só pode ser negativa. Em primeiro lugar, porque, como já vimos, o próprio Aristóteles viria a relativizar as graves acusações de Platão, transferindo-as da técnica retórica para a responsabilidade moral dos seus agentes. É o que faz quando, ao nível dos respectivos usos possíveis, compara a retórica a todos os outros bens, à excepção da virtude, especialmente com os mais úteis tais como o vigor, a saúde, a riqueza ou a capacidade militar: “com eles tanto poderiam obter-se os maiores benefícios, se usados com justiça como os maiores custos, se injustamente utilizados” (*). Depois, porque não podendo ficar imune a uma dada instrumentalização abusiva, a retórica contém no entanto em si própria o melhor antídoto para descobrir e desmascarar quem indevidamente dela se sirva.

(*) Aristóteles, (1998), Retórica, Madrid: Alianza Editorial, p. 51

Template desgovernado

Uma arreliadora avaria no template deixou hoje o Retórica suspenso por algumas horas mas já tudo voltou ao normal. Muito obrigado aos que tiveram a gentileza de me avisar.

07 junho 2005

Contorcionismo argumentativo: afinal o não não foi não

O voto francês e holandês não foi contra a constituição europeia em especial, foi contra o estado da UE em geral, ou seja, foi contra os actuais tratados.

Vital Moreira, Causa Nossa, 07.06.2005 (Post Referendos)


Ou seja? Não sei o que mais me surpreende nesta afirmação de Vital Moreira: se a abusiva ligeireza com que identifica "o estado geral da UE" com "os actuais tratados", se o contorcionismo argumentativo a que recorre para tentar desviar o "não" francês e holandês da constituição europeia (a única que foi a referendo) e artificialmente o fazer incidir sobre os tratados ainda em vigor. Não fosse a seriedade argumentativa a que Vital Moreira há muito nos habituou e haveria aqui que abrir alas à hipótese da mais pura manipulação. Contudo, tratando-se de quem se trata (e a credibilidade pessoal serve para isto mesmo), estou certo de que tudo não passou de uma interpretação menos feliz que o levou a "trocar o certo pelo duvidoso" ou para ser mais exacto, pelo muito duvidoso, mesmo. Acontece.

Fontes anónimas: a questão maldita

Tem pouco interesse:

o que interessa mais do que tudo, não é discutir o recurso (ou não) a fontes confidenciais. É, antes do mais, discutir se as histórias que se contam são ou não verdadeiras.

JPH, no Glória Fácil, 03.06.2005 (Post Watergate)


Tem muito interesse para o leitor:

a regra do jornalismo é a identificação, a publicação das suas fontes (...). O cidadão tem direito a conhecer a fonte de uma informação para poder responsabilizar o seu autor, deve conhecer os interesses da fonte, caso existam, deve poder avaliar a sua credibilidade ao longo do tempo e exigir-lhe contas, se for caso disso.

José Vítor Malheiros, Público, 03 de Fevereiro de 2003


Tem muito interesse para os Jornalistas:

O maior capital de um jornal, e o único do jornalista, é o seu brand name, uma reputação profissional impoluta, a credibilidade junto dos leitores e a confiança conquistada ao longo dos anos. Não basta entusiasmo e vontade de protagonismo. Fontes anónimas, jornalistas de ocasião, nada disto têm para oferecer.

Anabela Gradim, Manual de Jornalismo, BOCC-UBI

Freitas salva a sua pele

Será que o membro de um governo tem o direito de PENSAR sobre o Tratado Constitucional Europeu de maneira diferente (para não dizer contrária) daquela que é a posição oficial do seu governo? É claro que tem.

Será que o membro de um governo deve EXPRESSAR publicamente uma opinião pessoal sobre o Tratado Constitucional Europeu diferente (para não dizer contrária) da posição oficial do seu governo? É claro que não deve.

O Governo é um órgão colectivo, com vocação e exigências próprias, que não coincidem exactamente com a vocação e as exigências pessoais de cada um dos seus membros. Por isso se dirá que ao fazer estas declarações, Freitas como que se "demitiu" do Governo por alguns minutos, os suficientes para substituir o exercício político do seu alto cargo por uma avulsa e despropositada prática confessional ("a minha posição pessoal é concluir que este tratado não é viável").

A ideia que fica é a de que quis apenas "salvar a pele", no que respeita à mais actual questão europeia. Porque se as coisas vierem a correr para o torto (a manter-se o referendo), este seu atempado desabafo funcionará como uma "vacina", que lhe assegurará a imunidade às críticas. Do ponto de vista pessoal, pode então dizer-se que jogou uma boa cartada. Só falta ver como vai reagir Sócrates a esta "independência freitista".

Não queria estar no seu lugar. Porque se lhe puser côbro, estará a atentar contra a liberdade de expressão; se nada fizer, arrisca-se a que, a partir de agora, cada um dos seus ministros venha à praça pública "demarcar-se" da posição oficial do governo, só porque tem uma opinião pessoal diferente. E isso, nenhum Primeiro-Ministro merece.

Ciladazinha retórica

Procurando desacreditar o "não" na "Constituição" europeia, dizia João Cravinho ainda há pouco no programa "Falar Claro", da Rádio Nascença:

Pacheco Pereira sabe a europa que não quer, mas não sabe a europa que quer.

Jogo de palavras ou lance argumentativo? É que não há, que se saiba, qualquer relação lógica necessária entre o não saber (ainda) o que se quer, e o (já) saber o que não se quer. De outro modo, tanto se poderia inferir que Pacheco vota "não" por não saber a europa que quer, como Cravinho vota "sim" por não saber a europa que não quer. Em qualquer dos casos, um disparate, claro.

05 junho 2005

Grandes males, grandes remédios

À falta de um governo de reformas, aí temos um governo de reformados. Habituem-se...

Excertos de um livro não anunciado (237)

Liberdade ou manipulação?

Ponto prévio: reflectir sobre o uso da retórica é sempre ir além da própria retórica. Com efeito, uma coisa é pensar a retórica como técnica argumentativa que visa persuadir uma ou mais pessoas, ou, como diz Breton, enquanto “meio poderoso de fazer partilhar por outrem uma opinião” (*). Outra, bem diferente, é saber se ela se presta ou não a usos indevidos que cerceiem a liberdade de pensamento e de escolha dos auditórios a que se apresenta. A retórica, vimo-lo já, é lugar e encontro de subjectividades, manifestação de uma racionalidade humana que não cabe nos estreitos limites da razão científica, mas é também e acima de tudo, um instrumento de persuasão. Não é pois negligenciável a hipótese de poder ser utilizada para enganar os outros segundo as conveniências ou interesses de cada um. Pode, inclusivamente, degenerar num modo mais ou menos insidioso de “tomar o poder, de dominar o outro, pelo discurso” (**). É isso que Platão denuncia quando (embora, a nosso ver, tomando a parte pelo todo) considera que a retórica, por ele identificada à adulação, “não tem o mínimo interesse em procurar o que seja o melhor, mas, sempre por intermédio do prazer, persegue e ludibria os insensatos, que convence do seu altíssimo valor” (***).


(*) Breton, P., (1998), A argumentação na comunicação, Lisboa: Publicações D. Quixote, p. 13
(**) Reboul, A., (1998), Introdução à retórica, S. Paulo: Martins Fontes, p. XX
(***) Platão, (1997), Górgias, Lisboa: Edições 70, p. 61

03 junho 2005

Não, não e não

Sobre o referendo do momento:

1) que sentido faz prosseguir nos restantes países com o referendo do Tratado Constitucional Europeu no quadro de uma necessária ratificação unânime? Faz algum sentido? Não.

2) que sentido faz fingir que o chumbo de cada um destas países fundadores (França e Holanda) têm o mesmo significado político que teria (ou que terá) o eventual chumbo em qualquer outro país-membro? Faz algum sentido? Não.

3) que sentido faz continuar a correr para o referendo de um tratado, cujo texto e alcance político são ainda ignorados pela esmagadora maioria dos votantes, incluindo, grande parte das próprias elites nacionais? Faz algum sentido? Não.


O que faria sentido, então?

Faria todo o sentido esquecer o referendo e abrir a questão do tratado a uma verdadeira discussão pública europeia. Porque já toda a gente percebeu (mesmo quem nunca tenha lido o respectivo texto) que, nos termos em que o referendo vem sendo "institucionalmente" promovido, está (ou estava) em curso, uma verdadeira campanha de "cheque em branco". E isso, não há confiança política que o justifique.

Sem falsas demagogias

Assim é muito fácil acabar com as reformas dos outros. Fácil... mas inqualificável. Além de que o Estado não pode apelar ao patriotismo dos cidadãos e, ao mesmo tempo, privá-los dos direitos adquiridos.

Excertos de um livro não anunciado (236)

Retórica dos sujeitos, sim, porque “cada vez que se destrói a ideia de sujeito, cai-se na oposição duplamente artificial entre a racionalidade instrumental pura e as multidões irracionais” (*). Mas uma retórica de sujeitos sociais em que o sujeito não se dissolve na sua individualidade nem se anula numa obediência cega a qualquer ordem colectiva. Uma retórica, enfim, onde o exercício da liberdade pessoal se entrelaça com o reconhecimento da pertença colectiva. E é neste sentido que a retórica contemporânea se mostra apta a promover a revalorização da subjectividade.

(*) Touraine, A., (1994), Crítica da Modernidade, Lisboa: Instituto Piaget, p. 310

02 junho 2005

Judeu no Auditório Municipal de Gaia

Companhia: Teatro Experimental do Porto
Local: Auditório Municipal de Gaia
Representações: até ao próximo dia 9, mas só de quarta a sábado (21,30) e domingo (16 h)
Peça: ANTÓNIO JOSÉ DA SILVA (O JUDEU)
Autor, cenógrafo e encenador: Norberto Barroca

*

No passado sábado desloquei-me ao confortável Auditório Municipal de Gaia para assistir a mais um excelente espectáculo de teatro criado por Norberto Barroca, desta vez para comemorar os trezentos anos do nascimento do Judeu.

A representação abrange cenas de três das mais representativas peças daquele que é, cada vez mais, considerado como um dos nossos maiores comediógrafos de sempre:

- VIDA DO GRANDE DOM QUIXOTE DE LA MANCHA E DO GORDO SANCHO PANÇA
- GUERRAS DO ALECRIM E DA MANGERONA
- ESOPAIDA OU A VIDA DE ESOPO

Norberto Barroca recorre ainda ao Judeu, de Bernardo Santareno, para melhor nos fazer recordar António José da Silva e alguns aspectos da sua vida e da sua morte na fogueira, vítima da inquisição, por ser judeu.

A alta qualidade da representação fica a dever-se a um grupo de bons actores de onde sobressai João M. Mota (quer no papel de António José da Silva quer, muito especialmente, como Esopo) e também o versátil Hugo Faria.

Como ponto mais alto deste espectáculo destaco a cena final da morte na fogueira, onde os efeitos de luzes e de som reconduzem o espectador à intensidade dramática dos momentos que a terão antecedido e que deste modo tão impressivo e realista para sempre ficaram registados pelo historiador José Pereira Tavares:

A 16 de Outubro de 1736, antes da audiência da tarde, isto é, cerca das catorze horas, foi notificada a ANTÓNIO JOSÉ DA SILVA a sentença que o condenava. Em seguida, os guardas ataram-lhe as mãos e entregaram-no a um religioso da Companhia de Jesus, da qual geralmente se tiravam para esta ocasião os confessores, a fim de ele o exortar ao arrependimento, confortar no transe e acompanhar até ao momenhto do suplício. Por muito que de seu íntimo repelisse os consolos de uma crença que talvez nessa hora mais do que nunca lhe seria odiosa, o condenado não podia recusá-los, para que não fosse trocada a pena, relativamente misericordiosa, da asfixia, pelo martírio longo da fogueira. Assim, acompanhado do padre, e ladeado de um familiar da Inquisção, algum fidalgo, porventura o mesmo que o prendeu, na manhã de 18 de Outubro, dia festivo para o povo de Lisboa, por ser domingo e por ver nele castigar os inimigos da Fé, transpôs ANTÓNIO JOSÉ DA SILVA a soleira dos Estaus, caminhando para a morte. Mais dez infelizes, relapsos cinco, três confessos e dois negativos, faziam com ele a turma destinada ao verdugo, em que entravam três mulheres. De Sambenito vestido, vestido trágico onde em pintura viam seus supostos retratos, desenho rude de uma cabeça sobreposta a tições acesos; por sombreiro a carocha, a sinistra carapuça, adornada de chamas; de vela nas mãos presas, pés descalços, seguiam em fila os condenados à morte atrás de um grande crucifixo, donde o Cristo, virado para eles, dizem uns chamava a si os contritos, segundo outros, dando-lhes as costas, os abandonava como rebeldes. Sobre este particular é mudo o regulamento. Antes deles e além do crucifixo tinha passado a procissão dos que recebiam penas leves. Entre esses, homens 21, mulheres 25, ANTÓNIO JOSÉ veria, ao subir ao tablado, no claustro de S. DOMINGOS, onde se realizava a solenidade , seu irmão ANDRÉ, sua mãe e sua mulher. (...) Na assistência, D. JOÃO V e seus irmãos, os infantes D. FRANCISCO e D. ANTÓNIO, o herdeiro da Coroa D. JOSÉ, e o infante D. PEDRO; a corte por seus homens mais representativos; centenas de espectadores, muitos a quem as facécias do comediógrafo tinham chamado a riso, e agora a sua desgraça não tiraria uma lágrima. Triunfal cortejo para a coroação de um vate, diria ele entre si, se em causa própria tinha fácil ironia. Simplesmente um caso de demência colectiva, com por fundamento a crueldade humana. Horas demorava a cerimónia do auto, com o sermão obrigatório, a leitura das sentenças, e a abjuração dos que pela primeira vez delinquiam. Ouviu o condenado impôr a LOURENÇA COUTINHO e a LEONOR CARVALHO as penas de cárcere e arbítrio; ambas com a vida salva e livres, porque a pena de cárcere era a liberdade condicional, e na maioria dos casos de mera ficção jurídica. Já de noite, finda a solenidade, o conduziram à Relação, em frente, no palácio antigo dos Condes de Almada, e, ouvida a sentença dos juízes da coroa, ao Campo da lã, depois do Terreiro do Trigo, lugar das execuções. (*)

(*) Cf. programa da organização.