29 abril 2007

Honraria

A Lucília Nunes (LN), do Conversamos, que acaba de ver o seu blogue premiado pela X LIST - Thinking Blogger Awards, nomeia hoje o Retórica entre os 5 blogues (aliás, 8) que a fazem pensar, mesmo "sem comentários abertos". Tenho a dizer que, vinda de quem vem, é uma honraria e tanto. Grato.

A retórica do "julgamento político"

Para justificar a referência que fez ao passado de Paulo Portas como ministro de Estado e da Defesa, nomeadamente, ao facto de não ter apresentado nessa altura a proposta de alteração de debate que agora subscreveu, o melhor que o primeiro-ministro José Sócrates conseguiu adiantar foi que "há um julgamento político que tem de ser feito" sobre esse passado.

Ora este expediente argumentativo, notoriamemente inscrito na chamada retórica negra, não é mais do que uma tentativa de desviar o debate para o passado, quando é o presente que está em discussão. Porque se "há um julgamento político que tem de ser feito" é sobre o actual governo e não sobre os anteriores que já se submeteram ao que, em democracia, ainda é o julgamento dos julgamentos: a avaliação eleitoral. Numa comunidade devidamente informada, nenhuma retórica pode apagar um facto, nem substituir-se ao efectivo governo, nem fazer passar por racional o mero ataque à pessoa. Será preciso, um dia destes, lembrar isso mesmo ao nosso primeiro-ministro?

"Passaram-se"

Quando o sr. primeiro-ministro argumenta com o passado corre um risco: é começar a fazer parte dele

Paulo Portas

(respondendo ao questionamento de José Sócrates sobre a razão porque não propôs ele a mudança das regras do debate e avaliação do Governo no passado, quando era ministro de Estado e da Defesa)

28 abril 2007

Maquiavel em Democracia (2)

Estaline em particular, bem mais que Hitler, mantinha os seus colaboradores sob um estreito controlo e expurgava continuamente as fileiras; a incondicional dedicação dos seus colaboradores não fazia diminuir nem a sua desconfiança nem a sua crueldade. Para ele nada era indiferente; qualquer iniciativa, qualquer palavra, qualquer silêncio era catalogado, analisado e interpretado. No Estado policial mais poderoso e mais organizado da História, tudo era do conhecimento do chefe supremo. Tudo, mesmo os factos mais inofensivos, tinha um significado cuja apreciação reservava para si e cujas consequências só ele tirava, por vezes muito tempo depois.
Nas democracias, os processos são diferentes mas a inspiração é a mesma. É devido ao cuidado posto nos pormenores que o poder se conquista e se conserva. No seio do partido, que é o veículo da sua ambição, o político terá de organizar as redes de influência, terá de repartir os lugares pelos mais fiéis, terá de satisfazer as ambições julgadas úteis e terá de se organizar na base de clientes solícitos e totalmente dedicados por esperarem retirar, também eles, algum benefício do poder. Alargará essa mesma tarefa, tanto quanto for possível, em todos os sectores da sociedade; na imprensa, nos sindicatos, nas organizações, nas empresas e em toda a espécie de associações, religiosas, sociais, culturais e outras. É uma tarefa que nunca termina.


Edouard Balladur,(2006), Maquiavel em Democracia, Cruz Quebrada: Casa das Letras/Editorial Notícias, pp. 95-96


Nas democracias, os processos são diferentes mas a inspiração é a mesma...

Maquiavel em Democracia (1)

Edouard Balladur. Nasceu na Turquia e tem agora 78 anos. Foi, como se sabe, primeiro-ministro de França de Março 93 a Maio 95 e está, por isso, muito bem colocado para nos descrever os jogos de poder a que, hoje em dia, nenhum político se pode furtar. O seu livro “Maquiavel e a Democracia” editado pela Casa das Letras - que ainda estou a ler - tem o condão de nos revelar o que sobre o poder político pensa quem em tão alto cargo o exerceu. Tenciono trazer aqui algumas das passagens mais polémicas, a começar pela recorrente comparação que faz entre ditadura e democracia, cuja oportunidade se adivinha em tempos de invocada “claustrofobia democrática”.

Excerto de um livro não anunciado (373)

A focalização da atenção que acabamos de descrever é a que, em maior ou menor grau, podemos encontrar tanto na indução hipnótica como na retórica, com a diferença de que nestas tal focalização é intencionalmente provocada e já não espontânea, como no exemplo dado. Mas se a sua inserção na indução hipnótica não levanta qualquer problema, pois é justamente para o enfraquecimento dos processos lógicos do paciente que ela se orienta e dirige, o mesmo já não se poderá dizer quanto à retórica, onde a inevitabilidade da sua presença tem que ser articulada com a manutenção da capacidade crítica do auditório. O mesmo é dizer que, se na hipnose o aprofundamento da atenção do paciente parece não encontrar qualquer restrição ou reserva, por se confundir com o próprio efeito por ela visado, já na retórica, o nível de concentração da atenção do auditório não deve nunca ultrapassar aquele limite que faça perigar a respectiva autonomia de raciocínio e liberdade de decisão. Somos assim remetidos para a necessidade dos destinatários da argumentação se manterem atentos ao orador e à sua mensagem, mas conservando sempre a descentração necessária a uma avaliação comparativa e crítica. Determinar, porém, a intensidade máxima de atenção que ainda lhes assegure essas duas condições, é algo que só pode fazer-se em concreto, casuisticamente, pois, na retórica, os efeitos da focalização da atenção parecem funcionar de modo análogo aos dos medicamentos: até certa dosagem são muito úteis e necessários, mas quando tomados em excesso, só podem fazer mal.

25 abril 2007

Retórica fotográfica

Brendan Mcdermid/ReutersO olhar é a mensagem
(Escultura em exposição no Metropolitan Museum de Nova Iorque)

22 abril 2007

Retórica e Direito na Universidade do Minho


Esta sexta-feira estive na Universidade do Minho, a convite da ELSA-European Law Students' Association, para dar uma aula aberta sobre retórica, argumentação e persuasão no Direito. Parece que não correu nada mal, a avaliar pelos comentários finais. Mas o êxito foi notoriamente repartido:

- por um auditório francamente motivado para participar e intervir numa sessão que durou "apenas" o dobro do tempo previsto

- pela docente da cadeira (Filosofia do Direito), Prof.ª Clara Calheiros, que muito sabiamente ia enquadrando a tematização de cada um dos assuntos nos diferentes pontos programáticos do ano lectivo em curso

- pelo filósofo Desidério Murcho, verdadeiro mestre em lógica e argumentação - cuja caracterização do argumento cogente é hoje incontornável no estudo de uma argumentação seriamente sustentada - que, a meu convite, brilhantemente expôs a noção especializada de argumento forte ou fraco, em articulação com os princípios lógicos, metafísicos e epistémicos que o determinam.

- pelo poder de iniciativa e capacidade de organização (impecável) dos dirigentes da ELSA, nomeadamente do seu presidente Pedro Gonçalves, do Nuno e do João Leite, que foram, a todos os títulos, inexcedíveis nos cuidados logísticos, na atenção e na cortesia e estão, por isso, de parabéns.

Depois, foi com alguma surpresa mas, já se vê, também com muita satisfação, que tomei conhecimento do importante papel que a Prof.ª Clara Calheiros à retórica comete ao nível da metodologia jurídica, no âmbito do seu programa disciplinar. O destaque vai para o claro reconhecimento de uma retoricidade já presente no acto legislativo e que se estende ao acto administrativo, à decisão judicial e à intervenção do advogado em processo judicial.

Mas do programa consta igualmente uma breve incursão à história da retórica, com a análise das principais teorias de argumentação e persuasão que até nós chegaram, a anteceder um estudo pluridisciplinar do discurso argumentativo para o qual são convocadas a dialéctica, a retórica e a lógica formal. Não poderíamos, portanto, o Desidério e eu próprio, encontrar terreno mais favorável à defesa da complementaridade entre a lógica e a retórica no estudo da argumentação. E foi o que fizemos.

Ele com a sua já citada noção especializada de argumento, em torno da qual foi clarificando alguns outros conceitos fundamentais para a compreensão da própria cogência, tais como validade formal, validade informal, forma lógica, solidez, plausibilidade, falácias, argumento de autoridade, etc. e eu, aproveitando a sua presença para me espraiar mais sobre os aspectos retóricos da argumentação, quer ao nível de argumentos que "simulam" relações ou conexões lógicas que na realidade não existem (mas que nem por isso se podem considerar como falácias), quer sobre os meios técnicos de persuasão (ethos, logos e pathos) onde sempre se levantam mil e uma questões quanto à eficácia da retórica , tais como a amplitude de cada argumentação, a força dos argumentos e, muito especialmente, a escolha da melhor ordem de apresentação.

Estou muito grato a Desidério Murcho por ter anuído ao meu convite, mesmo com o regresso a Londres já marcado para o mesmo dia. Como o dono
deste blogue ainda há poucos dias escreveu no seu blogue, o Desidério é, além de grande filósofo, um admirável ser humano.

16 abril 2007

Excerto de um livro não anunciado (372)

Mas imaginemos agora que, a certa altura, somos surpreendidos, no decurso da nossa despreocupada leitura do jornal, por uma notícia que, por este ou aquele motivo, consideramos muito preocupante, ou então, excepcionalmente favorável a um qualquer interesse que nos diz directamente respeito. A nossa curiosidade agudiza-se, a leitura pode tornar-se anormalmente apressada, mas, acima de tudo, por nada deste mundo quereremos perder o menor detalhe de uma informação tão importante. Precisamos pois de prestar a maior atenção ao que é dito na respectiva notícia. Simplesmente, como diz Damásio, “a atenção e a memória de trabalho possuem uma capacidade limitada” (*), o que faz com que esse acréscimo de atenção que passamos a colocar na leitura do jornal, tenha como consequência directa uma correspondente diminuição da atenção sobre aquela pluralidade de factos e acontecimentos sobre os quais mantínhamos até aí um apreciável controlo e vigilância. Isto, no que respeita aos estímulos que nos são exteriores. Mas, com a redução do campo de consciência, é de admitir que um processo análogo ocorra também dentro de nós, ao nível dos conteúdos mentais a que passamos a ter acesso, pois, ainda no dizer de Damásio, “as imagens que reconstituímos por evocação ocorrem lado a lado com as imagens formadas segundo a estimulação vinda do exterior” (**). E, como sustenta este mesmo autor, as imagens são provavelmente o principal conteúdo dos nossos pensamentos, independentemente da modalidade em que são geradas e de serem sobre uma coisa ou sobre um processo que envolve coisas, palavras ou outros símbolos. Logo, retomando o exemplo da notícia do jornal, o embrenharmo-nos profundamente na sua leitura dá-se à custa de uma focalização da nossa atenção sobre o respectivo texto que, embora necessária à melhor compreensão possível, pode, a partir de determinado nível de intensidade, levar-nos à perda daquelas referências concretas ou idealizadas que normalmente nos asseguram a relativização do raciocínio e da própria avaliação. Ora o esfumar dessas referências só pode levar a uma tendência para a absolutização dos nossos juízos, na medida em que, desaparecendo os padrões comparativos, o que é pensado surge-nos como valendo por si mesmo, ou seja, não é verdadeiro nem falso, não é certo ou incerto, não é preciso nem impreciso. É, simplesmente. E como tal é assumido. Nenhuma comparação, nenhuma resistência: eis o limiar da própria hipnose (***).


(*) António Damásio, (1995), O Erro de Descartes, Mem Martins: Publicações Europa-América, (15ª. ed.), 1995, p. 184. Note-se que Damásio define a “atenção” como capacidade de concentração num determinado conteúdo mental em detrimento de outros, e “memória de trabalho” como consistindo na capacidade de reter informação durante um período de muitos segundos e de a manipular mentalmente (p. 61, op. cit.).
(**) António Damásio, (1995), op. cit., p. 124
(***) Apesar deste exemplo se relacionar mais directamente com a chamada auto-hipnose, o processo de focalização da atenção que nele se descreve é em tudo idêntico ao da hipnose induzida por uma terceira pessoa. Acresce que, para Chertock, a auto-hipnose é, em geral, mais difícil de obter que a hetero-hipnose, para além de ser tida como incapaz de produzir um transe profundo .

14 abril 2007

Crítica sobre crítica



Eduardo Cintra Torres, no "Olho Vivo" do Público de hoje, lamenta o fim das (excelentes) entrevistas de Ana Sousa Dias, na RTP2, que a direcção desta última retirou do ar sem qualquer explicação. Ao mesmo tempo desanca forte e feio sobre o programa cultural "Câmara Clara", da subdirectora do canal, Paula Moura Pinheiro, apelidando-o de "vulgaridade televisiva em termos de produção e conteúdo" que "serve o exibicionismo da própria subdirectora, com a sua idiossincrasia insuportável e um ego do tamanho do orçamento". Na impetuosidade da sua crítica vai mesmo ao ponto de afirmar a "impossibilidade de um programa razoável apresentado por tal figura".

Sobre o assunto direi:

1) Também me custa ver desaparecer o programa "Por outro lado", de Ana Sousa Dias, que inventou uma nova maneira de entrevistar, com tranquilidade (by Paulo Bento), com sabedoria e até com um certo charme q. b., bem ao contrário daquele estilo agressivo com que certos entrevistadores avançam para o entrevistado, como se se tratasse de mais um exame ou inquirição judicial, quando não, verdadeiro combate. Tem o pequeno senão de por vezes derivar mais para uma agradável conversa do que propriamente para uma entrevista mas, em qualquer caso, a maior descontracção e disponibilidade do entrevistado que quase sempre daí resultam, são, regra geral, muito compensadoras.

2) Embora nunca tenha assistido a um programa inteiro, lembro-me que, por duas ou três vezes, sintonizei de passagem o "Câmara Clara" e em nenhuma delas assisti ao que quer que fosse que pudesse justificar a contundência do conhecido e abalizado crítico (de que, aliás, sou habitual leitor). Sim, a atitude da "entrevistadora" Paula Moura Pinheiro não tem nada a ver com a de Ana Sousa Dias. Mais interventiva (muito mais), chega a responder às próprias perguntas que formula aos seus entrevistados e fá-lo, de resto, com uma exuberância de gestos e com tal empenhamento que, do ponto de vista da realização, justificam, sem dúvida, o grande plano em que frequentemente nos surge. Mero exibicionismo? Pode ser que sim, pode ser que não. Mas que me parece um excesso, parece. Se o programa se transforma numa tribuna para a entrevistadora o que estarão lá a fazer os convidados?

3) Afirmar, porém, que o programa é uma "vulgaridade televisiva em termos de produção e conteúdo" sem adiantar as razões que suportam avaliação tão negativa, não é, propriamente, um exercício crítico. Uma crítica carece sempre de fundamento, de razão ou justificação. É isso que a separa do palpite ou do mero mal-dizer. Quanto aos ataques pessoais que Cintra Torres faz a Paula Moura Pinheiro, são francamente de evitar e só os entendo como tendo surgido mais ou menos involuntariamente, ao correr da pena. Porque, aqui entre nós, o que é que a suposta "idiossincrasia insuportável" ou o "ego do tamanho do orçamento" de uma profissional da televisão tem a ver com a qualidade do seu programa? E se em resposta (legítima) Paula Moura Pinheiro viesse agora invocar a idiossincrasia do Crítico? Não, não é por aí.

Claro que sim

"A forma como fui tratado na Independente foi impecável"

José Sócrates

E foi. Sobre isso não resta hoje qualquer dúvida.

12 abril 2007

Sócrates de parabéns

Sócrates está de parabéns: contra a suspeita instalada foi o mais convincente possível. "Chegou a hora de me defender" - disse. E defendeu-se como muito bem pôde e quis. Negou más-intenções, favorecimentos, ilegalidades. Afastou dúvidas e insinuações que apelidou de mal-intencionadas. Bem vistas as coisas, só não apagou esta grande verdade: há factos que falam por si.



11 abril 2007

Os melhores correios do mundo?

Tenho à minha frente uma carta que acabo de receber, a qual - como atesta o respectivo carimbo - foi expedida em Lisboa, no passado dia 20 de Março. O que significa que demorou 22 dias(!) a chegar a V. N. Gaia. Pelos meus cálculos se tivesse vindo de burro (ou carroça) já a teria recebido há mais de 15 dias. Mas já burros não têm uns CTT que se dizem classificados entre os melhores correios do mundo. Burros seríamos nós se abánassemos com a cabeça para baixo quando nos querem passar por cima. Como é o caso.

10 abril 2007

Deveria ser crime

Estava ali ainda há pouco, creio que na TVI, uma senhora a contar que há mais de 18 anos que está à espera de uma operação aos joanetes num hospital público...

Poderá falar-se de um Serviço Nacional de Saúde num país onde estas filas (?) de espera são ainda o pão nosso de cada dia? A verdade é que, com um ministro da saúde tão obcecado pelos custos que mais parece um ministro da economia, o nosso SNS está a transformar-se num autêntico Serviço Nacional de Doença, mais perto da morte do que da vida. Porque, que diabo, não ter ainda sido operada uma paciente (hoje com 60 anos) cuja intervenção cirúrgica lhe foi medicamente determinada há 18 anos atrás, é uma omissão, no mínimo, insuportavelmente desumana e a que nenhum ministro, nenhum governo, pode ficar indiferente. Isto sim, deveria ser crime.

Logo se verá

E aqui fez mal o ministro em falar do problema do Primeiro-Ministro no mesmo momento em que comunicava a sua decisão sobre a Universidade. Inevitavelmente o Governo mistura assim os dois problemas. E mal, muito mal.

Jorge Ferreira, TOMAR PARTIDO

Também acho que Mariano Gago não deveria ter feito esta mistura. Primeiro, porque uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Segundo, porque o que disse de Sócrates e do seu currículo vale o que vale, já que ninguém esperaria que viesse dizer mal do Primeiro-Ministro (de quem depende). Ora se Mariano Gago sabe disso melhor do que ninguém, só alguma precipitação (ou desnorte?) o pode ter levado a prestar-se a este papel.
Teria ele realmente motivos para se precipitar? Isso é o que logo se verá...

08 abril 2007

O Bomba a quem o segue

Com indesculpável atraso, daqui saúdo a Carla Quevedo pela passagem do 4.º aniversário do seu Bomba Inteligente a cuja herança sou candidato natural, ou não me encontrasse, desde sempre, entre "aqueles que [mais] gostam de o seguir".

07 abril 2007

Excerto de um livro não anunciado (371)

Descobrir o que mais preocupa o auditório, aquilo a que atribui mais significado, interesse ou valor, insere-se numa estratégia que visa prender a sua atenção, despertando-lhe o desejo de escutar o que o orador tem para lhe dizer. O que constitui uma condição prévia da argumentação a que nenhum orador se pode furtar, pois como diz Perelman, “é preciso que um discurso seja escutado” (*) para que possa ter lugar o contacto de espíritos entre orador e auditório, próprio de toda a relação retórica. Logo, enquanto condição necessária tanto à retórica como à indução hipnótica, a focalização da atenção dos interlocutores oferece-se como ponto de partida ideal para a compreensão da proximidade processual entre uma e outra. E senão vejamos: em que consiste e como se realiza essa focalização da atenção? Todos sabemos como numa situação ou estado normal a nossa atenção permanece mais ou menos distribuída por um sem número de factos ou estímulos. A imagem e o som do televisor, o tocar do telefone, o amigo que nos bate à porta, a temperatura que faz na sala, o sol que nos entra pela janela, o conforto do sofá sobre o qual repousamos, o fumo de um cigarro entre os dedos, o jornal que folheamos algo displicentemente, são apenas algumas das percepções quase simultâneas que a nossa memória imediata se encarrega de manter perfeitamente disponíveis, ao alcance da nossa consciência. Trata-se, porém, de uma atenção minimalista, superficial e algo difusa, que, ao não incidir especialmente sobre nada, tudo nos permite ter à mão.

(*) Chaim Perelman, (1993), O império retórico, Porto: Edições ASA, p. 29

04 abril 2007

David Lynch: o cinema sem narrativa

Reparo que, a propósito do novo filme de David Lynch - INLAND EMPIRE - Jorge Leitão Ramos lança (*) a pergunta certa:

"Mas será que quando o cinema não é narrativo ainda é cinema?""

A pergunta fica no ar a conviver com a hipótese do cinema não narrativo ser já mais "instalação audio-visual" do que, propriamente, cinema. Mas o que um incondicional de Lynch não pode deixar de saudar é o modo particularmente feliz como JLR aborda/comenta/justifica a ausência da clássica narratividade:

"Eu acho que o cinema de Lynch não é feito para se perceber, no sentido narrativo. O cinema narrativo é o cinema em que uma coisa tem uma consequência, que depois dá origem a outra coisa. Este filme não tem nada disso. O que é curioso e interessante, neste filme, é que cada cena é legível, mas não cola com a anterior nem com a seguinte. O que não se compreende é o mosaico. Mas cada cena não só é legível como nos impele a olhar. Temos sempre vontade de saber para onde aquilo vai. Mas essa vontade é negada pelo filme, que nunca dá respostas. Não é por isso que o filme é mau. Nós já não nos preocupamos em entender a pintura em função do que lá está representado; a poesia já há muito que deixou de contar histórias ou de ser legível; a música, muito menos. O cinema é que está preso à sua matriz narrativa. E quando aparece alguma coisa que sai disso, essa coisa aparece como absolutamente estranha. O que eu gosto no filme é que não se percebendo nada, estamos sempre com vontade de perceber, de encontrar um fio."

É possível que a própria retórica se mostre, por vezes, também demasiado presa à matriz narrativa, porventura ainda a mais útil quando se trate de transferir uma ideia, mas nem sempre eficaz para fazer partilhar a emoção e o sentimento que António Damásio reconduz, como se sabe, à esfera da racionalidade. E depois, como diz Lynch:

"há muitas realidades. Há a realidade íntima das pessoas e há a realidade da superfície. O cinema pode mostrar todas elas. Se os filmes tiverem uma realidade de superfície, a experiência que as pessoas têm deles serão similares; mas se se forem tornando abstractos, as interpretações começam a multiplicar-se. O cinema pode ser abstracto e numa linguagem que entendemos muito mais do que dizemos entender." (*)

No cinema, como na retórica.


(*) in Actual, Expresso, 31 de Março 2007

02 abril 2007

JN sem mentiras (mesmo no 1 de Abril)

Só agora li (no Público do passado sábado) que o actual director do Jornal de Notícias, José Leite Pereira, é completamente contra a tradição de publicar mentiras no dia 1 de Abril (como o JN fez durante tantos e tantos anos). Subscrevo esta sua posição (que não conhecia) bem como o principio geral que enunciou à jornalista: "os jornais não são para trazer mentiras, em situação alguma". Cai, porém, assim, a única justificação que ainda me pareceria admissível para o transformismo editorial a que me referi no post anterior.

01 abril 2007

Transformismo editorial?

Bem sei que hoje é 1 de Abril, dia das mentiras, e que o Jornal de Notícias desde sempre brinca com esta data, dando à estampa uma ou mais falsas notícias para cuja falsidade se apressa a chamar a atenção no dia seguinte.

Mas daí a fazer-se passar por jornal desportivo, como é o caso da edição de hoje, deveria haver uma grande distância. Ignoro (ou talvez não) que opções estratégicas estão por trás deste "transformismo editorial". Mas como leitor diário do JN, praticamente desde que aprendi a ler, custa-me vê-lo disfarçado de jornal desportivo que é a designação que melhor cabe a um jornal que na sua edição de hoje ocupa, vejam bem, 18 (!) páginas com o desporto em geral, sendo que entre as 6 primeiras figuram 5 páginas inteiramente dedicadas ao Benfica-Porto de hoje, para além da chamada de primeira página sobre o mesmo evento.

Não tenho nada contra os jornais desportivos que, aliás, folheio de quando em vez. Muito menos contra o desporto de que fui praticante e até dirigente de um dos “3 grandes”, embora numa modalidade amadora (voleibol). Não tenho nada também contra o futebol, principalmente, quando bem jogado (sim, não comungo da erística clubite que o "cantinho do hooligan" bem-humoradamente parodia).

Mas com franqueza, não estou a ver que um leitor diário do JN estivesse preparado para encontrar hoje nas 5 primeiras páginas (interiores) do seu jornal, apenas desporto, apenas futebol, apenas um jogo e mais desporto ainda entre as páginas 47 e 59 (12 páginas consecutivas de desporto, só uma vez interrompidas por uma inteiramente preenchida com publicidade). Se foi mentira de 1 de Abril, foi um exagero. Se não foi, ainda pior. Não faltam, por certo, leitores que, se soubessem o que hoje os esperava, teriam, por certo, preferido comprar a “Bola”, o “Record” ou “O Jogo”. Conheço, pelo menos, um deles.