23 agosto 2008

Dormir com a dúvida


"As consequências para o continente europeu são imprevisíveis", avisava Pedro Correia, há meio ano atrás, a propósito da independência unilateral do Kosovo. E não foi preciso esperar muito. A guerra da Ossétia do Sul e as notórias dificuldades em lhe pôr fim, são já as primeiras (mas não as últimas) dessas consequências imprevisíveis.

Não faço a mínima ideia sobre quem é que tem razão em qualquer dos conflitos, quem lhes deu origem ou de quem é a culpa. Mas parece que também não é propriamente isso que move os beligerantes (ou quem os apoia). O que os move, está bom de ver, não é a procura da razão mas antes a satisfação de um particular interesse, seja o da concreta apropriação política e económica do território, seja o da chamada vantagem geoestratégica.

Porque a razão não se combate com armas e violência, com mortes e destruição. A razão, quando é caso disso, combate-se com argumentos. Seja, porém, qual for o cartório das culpas e os sujeitos da sua imputação, a ninguém passa despercebida a duplicidade de atitudes e opiniões dos actuais senhores do mundo (sem aspas). No espaço de 6 meses, estes sim, viraram completamente o bico ao prego: a Rússia, que esteve contra a independência do Kosovo é agora a favor da independência da Ossétia do Sul; os EUA, que apoiaram a independência do Kosovo, nem querem pensar na independência da Ossétia do Sul.

Ora a verdade é que, como se lê
neste comentário de lucasdasilva:

"Se o Kosovo sendo parte integrante e berço da nação Sérvia teve direito à independência, declarada unilateralmente e reconhecida de imediato pelo EUA e por alguns Estados da UE, porque não pode a Ossétia seguir o mesmo caminho. Se a questão é de qual a maioria dos residentes, no Kosovo, eram kosovares de origem albanesa, na Ossétia são ossetas de origem russa. Os guardiães da democracia não podem ter dois pesos e duas medidas, os argumentos que serviram para o Kosovo, devem servir para a Ossétia do Sul”

Pode-se por isso achar estranho que
Vital Moreira comente o assunto sem dirigir uma única palavra (contra ou a favor) à ocupação da Geórgia pelos blindados russos. Mas nem isso diminui o acerto da sua crítica à duplicidade de reacções. É que está-se mesmo a ver que se a Sérvia tivesse feito ao Kosovo o mesmo que a Geórgia fez agora à Ossétia do Sul, não teria tido por parte dos EUA o mesmo apoio e solidariedade que estes vêm dispensando à Geórgia. Ou teria?

Bem sei que a carapuça da duplicidade de reacções, que Vital Moreira enfia apenas aos que estão contra a Rússia, pode igualmente servir aos que criticam os EUA. Tal como não é o facto de uns e outros terem agido desta ou daquela maneira no Kosovo que faz com que estejam agora certos (ou errados) no caso da Ossétia do Sul. O problema é que para bem se compreender o que publicamente declaram estes senhores do mundo e da guerra, não basta conhecer o teor da sua mensagem, é essencial descobrir também a real intenção que os anima. Temos, em suma, que desviar a atenção do que é dito para a credibilidade de quem o diz. E é aqui que entra a duplicidade e a desconfiança a que a mesma invariavelmente conduz: quando os EUA e a Rússia mudam de "clube" conforme o campo onde o “jogo” é disputado, nada acrescentam à sua credibilidade internacional. O que não é nada bom. Porque, não nos iludamos: no teatro de operações desta guerra do Cáucaso, são os EUA e a Rússia que aparecem como actores principais e deles, sobretudo, depende que o desfecho venha a ser mais ou menos (in)feliz.

Talvez que nos últimos 20 anos as coisas tenham corrido demasiado bem para o lado americano ou, se se quiser, para o lado ocidental, com a Rússia a ser progressivamente remetida, no dizer de João Pereira Coutinho (1) ao "estatuto de inferioridade que o Ocidente lhe reservava em recorrentes confrontos diplomáticos e geoestratégicos". De inferioridade e até de humilhação, acrescente-se, se se pensar, por exemplo, nas mais do que provocadoras promessas a antigas repúblicas soviéticas de adesão à União Europeia e à Nato ou na instalação do sistema de anti-mísseis americano na República Checa e na Polónia.

"Ninguém gosta de ser cercado", lembra ainda Coutinho, e de facto, o cerco à Rússia, se não é, parece. Daí que ao fazer avançar os seus tanques pela Geórgia dentro, sob a capa da Ossétia do Sul, a Rússia tenha pretendido, acima de tudo, enviar um sério aviso aos EUA e aos seus seguidores: "parem lá com o cerco, que já foram longe de mais". E parece que foram mesmo, a avaliar pela crueza com que Orly Azoulay (2) faz o balanço da guerra do Caúcaso: "a Rússia venceu, a Geórgia perdeu e os Estados Unidos foram estrondosamente derrotados". Pior do que isso, os russos estarão agora na disposição de responder à arrogância americana com uma autêntica "tolerância zero" a mais cedências na sua política de defesa e segurança estratégica. A Rússia, tudo o leva a crer, pôs fim ao sistemático recuo a que a vinham forçando na cena internacional. Mas a pergunta que se pode fazer é se ainda teria mais para onde recuar.

Certo é que a corda está tão esticada que a guerra foi suspensa mas continua à espreita. E a avaliar pela série de avisos, acusações e ameaças que os EUA e a Rússia insistem em trocar, o conflito parece mais próximo do princípio do que do fim. É a retórica tomada, no mais indevido dos seus usos, "como arma de arremesso acusatória no discurso" (3). Mas perante uma Rússia manifestamente encurralada, que sentido diplomático fará, por exemplo, vir o chefe de Estado norte-americano dizer que não interessa aos Estados Unidos manter uma relação conflituosa com a Rússia, ao mesmo tempo, que Condoleezza Rice com todo o estrondo mediático acusa o país de Putin de actuar como "fora da lei"? E que contributo positivo para o regresso de uma paz duradoura poderia ter dado o presidente francês, Nicolas Sarkozy, quando há quatro ou cinco dias ameaçou a Rússia de vir a enfrentar "sérias consequências", se não iniciasse a retirada? A questão é: o que pode gerar esta agressividade? Claro: mais agressividade. Não surpreende por isso que o presidente russo Medvedev despropositadamente resolva advertir de que qualquer agressão contra cidadãos russos terá uma pronta resposta esmagadora. Ou que o chefe da diplomacia russa, Serguei Lavrov, tenha sentido necessidade de afirmar que a posição adoptada pela NATO no que respeita ao conflito na Geórgia «vai ter consequências», na relação da organização com Moscovo.

Ainda bem que, no meio desta poeira belicista, alguém soube manter a serenidade e a lucidez suficientes para defender em Bruxelas que a Rússia e a Europa precisam uma da outra e que "é justamente em tais situações que o diálogo se faz necessário". Convirá, porém, olhar para o diálogo como um meio e não como um fim, pois um diálogo em que as partes se limitem a verbalizar o seu inamovível interesse ou a maior vantagem possível, está condenado ao fracasso. Para que o diálogo não seja apenas a continuação da guerra por via pacífica, é imperioso que da retórica do interesse se passe à retórica da razão, o que, por sua vez implica, não apenas descobrir racionalmente a solução mais justa, mas (e principalmente) obedecer ao imperativo ético de a aceitar, mesmo quando não conduza aos resultados políticos mais favoráveis ou ambicionados. Teremos gente para isso? Por mim continuo a dormir com a dúvida.


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(1) in "Única", Expresso, 15 Agosto 2008
(2) Correspondente em Washington do israelita Yedioth Ahronoth, citado há dias, no Público, por Jorge Almeida Fernandes
(3)
Tito Cardoso e Cunha

12 agosto 2008

Metáfora de pernas para o ar

Castanheira Barros, ex-candidato (derrotado) a líder do PSD, disse no passado fim-de-semana, para quem o quis ouvir, que Manuela Ferreira Leite não compreende o povo e que, por isso, o PSD tem um presidente mas não tem um líder.

Esta coisa de o PSD ter um presidente mas não ter um líder não está mal apanhada, não senhor, mas o que mais me chamou a atenção nas declarações de Castanheira Barros foi a expressão popular a que recorreu para numa frase sintetizar o que, segundo ele, é preciso fazer no PSD: "é preciso virar o bico ao prego".

Ora "virar o bico ao prego" quer fundamentalmente dizer "dar o dito por não dito", que é o que já não falta no PSD (como em qualquer outro Partido). Mas ainda que faltasse, "dar o dito por não dito" não seria coisa que um político arriscasse admitir em público, muito menos recomendar. Daí o enigma: o que quis realmente dizer Castanheira Barros? Ainda não sei o que quis dizer mas creio que já descobri porque disse o que disse: em vez de conferir à expressão "virar o bico ao prego" o sentido corrente de uma mudança negativa ("dar o dito por não dito", "não manter o que disse", "voltar com a palavra atrás", etc.) associou-a a uma mudança positiva ("dar uma volta a isto", "alterar este estado de coisas", "corrigir", etc.). Aliás,
já aqui dela teria um idêntico entendimento. Veja-se a afirmação com que termina o seu post: "Está na hora de virar o bico ao prego" . Concerteza que não queria incitar ao "dar o dito pelo não dito". O problema foi que inverteu a metáfora, pô-la de pernas para o ar. E para o ar assim foi, por certo, todo o efeito que do seu uso esperaria. Não é grave, acontece aos melhores e até ficou engraçado. Mas não serei eu a virar o bico ao prego: do ponto de vista persuasivo, uma metáfora desajustada é sempre muito mais nociva do que uma metáfora que simplesmente não funcione.

10 agosto 2008

O homem.com medo de si próprio (6)

Pela frente temos o já clássico problema da neutralidade (ou não) da técnica, uma neutralidade que tanto pode ser entendível no sentido de que se a técnica é neutra então é possível impor-lhe valores morais, jurídicos e outros, como também naquela acepção de que se é neutra, então é neutra relativamente a todos os valores. Ora é da lucidez com que se analise e compreenda este problema da neutralidade que, segundo Bragança de Miranda, dependem as respostas à própria questão da técnica e que, a seu ver, serão tipicamente duas. “A primeira consiste em ‘regionalizá-la’ ou circunscrevê-la, fazendo dela um subsistema de um sistema mais geral, por exemplo, a ‘modernidade’ ou o ‘capitalismo’. A outra insiste na ideia de uma espécie de imperium da técnica que se constrói e revela na história do Ocidente. Evidentemente que no primeiro caso ela seria controlável, bastando controlar o ‘sistema’ que a integra, através da ética, por exemplo; no segundo caso, tudo se complica” [11]. E tudo se complica porque, ao escapar à instrumentalidade que a punha à disposição de um ‘uso’, a técnica, ela própria, coloca-se fora de todo e qualquer controlo, pondo desse modo em causa a possibilidade de uma decisão ou resposta ainda humanista. Colocado que está entre a garantia de salvação e o perigo da catástrofe, ao homem será, por certo, mais indicado e urgente partir da pior das hipóteses, a da catástrofe, no exercício de um pensamento e de uma acção que serão prudenciais precisamente por isso: por se operacionalizarem mesmo na ausência de uma formulação última e definitiva da verdadeira essência da técnica.

O que permanece ainda demasiado obscuro é a particular relação que o homem com ela estabelece através dos tempos e, em especial, no seio da cultura contemporânea, onde a técnica moderna parece desafiar para um constante questionamento ético e social. Aceitar este desafio implica, porém, responder a uma primeira questão: como foi possível chegar a este predomínio da técnica na cultura actual?

A substituição da força orgânica

Arnold Gehlen explica o crescente sucesso da técnica a partir da substituição da força orgânica pela anorgânica, o que teria vindo a alargar o seu campo de intervenção, autonomia e potencial de desenvolvimento. Lembra, por exemplo, que foi com a máquina a vapor e o motor de combustão alimentados pelas reservas de carvão armazenadas debaixo do solo, que a humanidade se tornou, finalmente, independente das fontes naturais de energia que crescem em ritmo anual. Até aí, ou seja, “enquanto a madeira era o principal material e o trabalho do animal domesticado a fonte mais importante de energia, havia uma limitação para o ritmo e crescimento da cultura material que, não sendo técnica, dependia do lento crescimento e do escasso escopo da reprodução orgânica” [12]. A partir do momento, porém, em que se tornou possível construir obras de engenharia hidráulica destinadas à produção de energia eléctrica e também com a descoberta do aproveitamento da energia atómica, deu-se o último passo “para a emancipação dos substractos orgânicos necessários à obtenção de energia” [13].

O facto da passagem da substituição do orgão para a total substituição do orgânico ser determinada “por uma legalidade espiritual um tanto misteriosa” [14], levou Gehlen a interrogar-se sobre o verdadeiro fundamento dessa substituição do orgânico por materiais e forças anorgânicas, a qual continua, aliás, a estar na base do desenvolvimento da técnica. Tal fundamento residirá no facto do domínio da natureza anorgânica ser muito mais acessível a um conhecimento metódico, racional e estritamente analítico, logo, também mais susceptível de prática experimental. O mesmo já não se pode dizer do domínio biológico e do domínio anímico que são incomparavelmente mais irracionais. Daí a tendência para os técnicos e os cientistas conceberem o mundo numa base positivista fáctica, pois as ciências e as técnicas de maior sucesso exercem uma certa irradiação sobre a nossa visão do mundo e, naturalmente, influenciam-na. É no entanto de assinalar, diz Gehlen, que este tipo de concepção do mundo só se tenha divulgado depois do séc. XVII, quando, como se sabe, já há meio milhão de anos que existe uma produção técnica. [cont.]
__________
[12] Gehlen, A., (s/d), A ALMA NA ERA DA TÉCNICA, Lisboa: Livros do Brasil, p. 18
[13]
idem
[14] ibidem, pp. 18-19


in Américo de Sousa (2004), O homem com medo de si próprio, Porto: Estratégias Criativas, pp. 17-19

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05 agosto 2008

Novo jornalismo?

José Cevera, o recém-nomeado director da Escuela de Periodismo Digital, bate de frente no actual modelo de jornalismo. Radical, persuasivo e muito directo, Cevera diz, por exemplo, que se um jornalista treinado e com largos anos de experiência faz um produto que nao se diferencia claramente do produto de um amador (jornalismo do cidadão), então tem um problema: está a fazer um mau produto. Anunciado o estilo, aposto que vai gostar de o ver e ouvir aqui:

04 agosto 2008

A entrevista do entrevistador

"Mas eu não penso assim" - atalhava Adriano Moreira para rejeitar a interpretação que Mário Crespo, vá-se lá saber porquê, repetidamente lhe propunha. Crespo aduzia factos sobre factos, razões sobre razões, sempre em sentido único: condenar a comunicação de Cavaco. Mas Adriano Moreira, muito senhor da situação, ouvia, ouvia, ouvia, e no final dizia de sua justiça: "eu não penso assim" - logo explicando porque não podia acompanhar as pretensões críticas do apresentador. As qualidades profissionais de Mário Crespo estão muito acima deste episódio. Mas hoje, mais exactamente há minutos atrás, ali no Jornal das Nove, da SIC Notícias, a coisa não lhe correu nada bem. Chamado a entrevistador fez-se de entrevistado. Resultado: era uma vez uma entrevista.

Eu é que sou o Presidente

Sim. Cavaco dramatizou, criou uma exagerada expectativa, intrigou o país, no modo como fez anunciar a sua mais recente comunicação televisiva. E, vale admitir, nada disso lhe terá passado despercebido. Do ponto de vista de uma economia psicológica das comunicações (presidenciais), terá sido um erro. Amanhã, poderá ter algo de muito mais importante e decisivo a dizer ao país e já não ser (tão atentamente) escutado. Foi um risco, portanto. Mas conhecendo-se o Presidente, como se conhece, acredito que foi um risco muito bem calculado. A economia do discurso terá cedido à estratégia política no desempenho do seu alto cargo. Sentiu que precisava dar este sinal com a maior clareza e perante o maior dos auditórios possíveis: o próprio país. Pode-se concordar ou discordar, mas uma coisa é certa: acabou a ambiguidade na matéria. A partir de agora, os líderes políticos e os deputados a quem o Presidente atempadamente avisou da sua discordância não vão mais poder assobiar para o ar. Parafrasendo alguns deles, "cada um que assuma as suas responsabilidades". O Presidente assumiu as suas. E claro que o estatuto administrativo e político dos Açores é muito importante, mas mais importante ainda é não permitir que uma pontual (e mal explicada?) unanimidade dos deputados leve à redução dos constitucionais poderes do Presidente. Também por isso me parece tão certeira esta análise de Mário Ramires, do SOL.

03 agosto 2008

O "Público" tornou a errar


Ao ler esta pequenina nota na edição de 28 Julho 2008 do Público, onde o jornal se limita a corrigir o erro de informação cometido numa notícia de grande destaque, interrogo-me se nestes casos o expediente da confissão do erro será alguma vez suficiente para "apagar" a ofensa pública à reputação e à dignidade das pessoas injustamente visadas. Como seria justo que acontecesse ou que, pelo menos, o jornal tudo fizesse por isso. O que não fez.

Repare-se que
o texto da notícia não é de modas ao referir que a portaria “é por muitos considerada atentatória, uma vez que discrimina pessoas consoante a sua etnia ou condição social” e que “não é, como muitos poderiam supor, uma regra do início do século passado, nem tão-pouco mais uma das célebres determinações da governação de António de Oliveira Salazar” mas antes “um documento legal publicado no Diário da República a 25 de Setembro de 1985.

Que jurista gostaria de ver associado o seu nome (e imagem pessoal) à aprovação de uma tal portaria? Nenhum, claro. Nem mesmo os seus verdadeiros autores, se deles se tratasse. Apesar disso (ou por isso mesmo?) o jornal não hesitou em escarrapachar os nomes dos quatro juristas (Vital Moreira à cabeça) que teriam votado a favor da constitucionalidade da dita norma. É falso, soube-se pouco depois. E à manifesta argolada" jornalística junta-se a grosseira infâmia. Sim, porque não há duas éticas, uma para a acção jornalística e outra para as restantes acções.


No dia seguinte, Vital Moreira reage, fazendo notar:

1) que, pelo contrário, os quatro juízes em causa (incluindo ele, claro) votaram antes pela inconstitucionalidade da dita norma

2) que espera "que o Público corrija a lamentável informação falsa e peça desculpa aos visados (dois dos quais já falecidos) e ao público."

Só então o jornal reconhece publicamente o erro, como se pode ver acima. Mas de dois reparos já não se livra:

1.º
Nesta sua breve nota "O Público errou", o jornal limita-se a desfazer o erro. Repare-se que, ao arrepio do que costuma fazer em situações análogas *, e apesar de Vital Moreira ter escrito que esperava um pedido de desculpas aos visados, o jornal não pede desculpa nem mostra o menor constrangimento com o sucedido. É aí que o Público volta a errar.

2.º
Já agora, como é possível que se dê um erro destes num jornal de referência? Tratando-se de dados objectivos e de acessibilidade garantida, porque não foram previamente confirmados? E estando em causa notícias que possam afectar a imagem pública de alguém não será exigível um nível superior de redundância na validação dos factos? Pior ainda, é a sensação que fica, a de que a todo o momento (já amanhã ou depois) o mesmo erro poderá acontecer e com as mesmas nulas consequências. Convenhamos que não será a melhor das expectativas para se fidelizar um leitor .

* Como, por exemplo, no "Público errou" de 25 Março 2008, que terminava deste modo: "Um evidente lapso pelo qual o Público se penitencia, deixando aos visados e aos leitores o respectivo pedido de desculpas."

02 agosto 2008

O homem.com medo de si próprio (5)

Aos potenciais perigos da técnica, devidos à margem de imprevisibilidade que a acompanha, aos erros e às más decisões, há que juntar, portanto, este perigo maior traduzido agora pela possibilidade da própria técnica se vir a apropriar do centro de decisão. Será este último perigo completamente utópico num tempo em que a clonagem e os cyborgs já estão na ordem do dia? Ainda que não se acolha, por ora, a ideia de que a técnica escapa a qualquer determinação antropológica, uma coisa é certa: essa possibilidade mantém-se de pé. Por um lado, porque ainda não foi inequivocamente negada, por outro, porque os progressos já conseguidos em áreas como a engenharia genética e a nanotecnologia, passando pelos implantes, transplantes e outras intervenções de carácter acentuadamente protésico, são hoje potenciadores da futura reconfiguração de um humano cada vez mais tecnológico. Tudo dependerá, assim, de se vir ou não a ultrapassar aquela situação-limite a partir da qual o homem passaria de dominador a dominado, feito escravo da técnica que ele próprio concebeu.

Heidegger, como se sabe, não se afasta muito, ou mesmo nada, deste catastrófico cenário, ao catalogar como importante manifestação da técnica o “carácter irresistível do seu domínio ilimitado” [9] . Tal equivale a reconhecer na técnica uma exigência cujo cumprimento o homem não pode impedir e ainda menos pode ver e dominar. Nestes termos, os gritos de alarme que frequentemente são lançados no sentido de que o percurso da técnica deve ser dominado, são vistos por Heidegger não só como testemunho da apreensão que se espalha mas também como fruto da total ignorância dessa incontornável exigência da técnica. E se, entretanto, tais gritos de alarme se calam, isso não quererá dizer “que o homem controla a técnica. O silêncio traduz muito mais o facto de que face à reivindicação do poder pela técnica o homem se vê reduzido à perplexidade e à impotência, quer dizer, à necessidade de se conformar, pura e simplesmente – explícita ou implicitamente -, ao carácter irresistível da dominação tecnológica” [10].

Em crise fica, portanto, a concepção antropológica-instrumentalista da técnica onde esta surge tanto como coisa humana (inventada, dirigida e estabelecida pelo homem e para o homem), como instrumento (aparelho, utensílio ou meio que o homem manipula em função da sua utilidade). Porque embora nos proporcione ainda uma adequada visão de conjunto do desenvolvimento histórico da técnica, já não nos permite, contudo, perceber o carácter singular de que a técnica se reveste na actualidade, muito menos concorre para o seu desvelamento ou desocultação
. [cont.]

__________
[9] Heidegger, M., (1995), LÍNGUA DE TRADIÇÃO E LÍNGUA TÉCNICA, Lisboa: Vega, p. 27
[10] ibidem, p. 28


in Américo de Sousa (2004), O homem com medo de si próprio, Porto: Estratégias Criativas, pp. 16-17

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