30 novembro 2008

Da hipotipose à retórica do arquitecto

( Via estadao.com.br)

Alguém disse que “retórica é toda a linguagem, na sua realização como discurso”. E é bem verdade. Há contudo, sempre haverá, discursos mais retóricos do que outros, que o mesmo é dizer, mais persuasivos e eficazes. Este texto, da autoria de Olívia Fraga, do "O Estado de S. Paulo" (o mais antigo dos jornais da cidade de São Paulo ainda em circulação) está nitidamente acima da média em matéria de retórica epidítica, neste caso, elogiosa.

Notório é o recurso à hipotipose, na manifesta intenção de dar a “ver” aquilo sobre que escreve: “imagine uma casa cercada de verde por todos os lados, uma ilha de sossego no caos urbano. Essa arquitetura do morar "natural", que não relega o jardim a mero papel coadjuvante”. Imagine, diz Olívia. E prossegue numa tão pictórica descrição que só não vê mesmo quem não quiser “olhar”: “Arthur resolveu "girar" a fachada original, para que a face principal estivesse à frente da piscina e do gramado”;“Fialho trabalhou com liberdade no terreno de quase 500 m² (…) misturando cores e texturas. E os painéis de vidro vão e vêm sobre os trilhos, o que favorece a circulação de ar”. Perante quadro tão impressivo e realista, será que alguém tem a coragem de dizer que ainda não conseguiu “ver” a casa?

A hipotipose, essa está-se mesmo a ver que foi aqui chamada para favorecer o elogio ao arquitecto brasileiro Arthur Casas, em particular, ao projecto de uma certa casa no Jardim Paulista. Ora é à mesma casa que teremos de regressar se quisermos perceber o menos vulgar sentido de retórica que nela Olívia Fraga descobriu. Pois diz a cronista que esta casa “apresenta a retórica característica do arquiteto - muita madeira (cumaru da fachada, pela Legno Marcenaria, preço sob consulta), pureza de linhas e ausência de barreiras visuais entre o estar e a cozinha”. Teríamos assim uma retórica do arquitecto que seria também uma retórica de muita madeira. Uma confusão, portanto.

Mas basta dar uma vista de olhos ao sub-título da crónica, para que tudo fique mais claro. A casa, afinal, sintetiza - segundo a cronista - as ideias de arquitectura de Arthur Casas. E por mais raro que seja este sentido de retórica, tantas vezes ela surge conotada com o discurso floreado e vazio, que é de louvar que
Olívia Fraga a tenha referido às ideias, seu verdadeiro lugar.

29 novembro 2008

Essa não cola


Para quem é amante de Coca-Cola, uma péssima notícia: o El Corte Inglés passou a comercializar a Pepsi, em exclusivo. Nada contra a Pepsi ou qualquer outro refresco similar. Mas Coca-Cola é Coca-Cola. Não é Pepsi, nem nada que lhe pareça. É claro que há gostos para tudo e o El Corte Inglês é livre de vender a marca que muito bem entender. O que surpreende é a aparente inflexão na política de compras destes grandes armazéns, tradicionalmente orientada para a satisfação do cliente. Porque se o passar a vender Pepsi reforça até essa boa política, já o deixar de comercializar a Coca-Cola, frustará muitos dos seus clientes habituais.

Consta-se que a Pepsi dá melhores condições (mais margem de lucro) aos seus revendedores. Era essa, pelo menos, a explicação que me davam os donos de algumas mercearias, tasquinhas ou pequenos bares de praia, sempre que lhes pedia uma Coca-Cola e sem qualquer cerimónia me apresentavam uma garrafa de Pepsi, como se da mesma coisa se tratasse. Nunca aceitei o "embuste" e lembro-me bem de, num dos casos, ter mesmo preferido pagar o custo da garrafa, a ter que bebê-la.

Pensei na altura que tudo se explicaria pela tacanhez ou impreparação comercial dos donos desses modestos estabelecimentos que, a troco de mais uns cobres de lucro, iam ao ponto de ignorar as preferências dos seus próprios clientes. Mas agora que o El Corte Inglês desceu praticamente ao mesmo nível, já nem sei o que hei-de pensar. Sei apenas que irei beber a outro lado. E já não é mau. Mau seria o El Corte Inglês fazer-me engolir o que não quero beber. Não, essa não cola.

28 novembro 2008

O que a falta de retórica faz

Pode ser que Manuela Ferreira Leite se mantenha por mais algum tempo na liderança partidária, já que, por esta ou por aquela razão - ou, talvez mais exactamente, por este ou aquele interesse – não falta quem se mostre disposto a “levá-la ao colo”, tudo lhe desculpando (até a candidatura de Santana a Lisboa). Seja como for, é muito triste ver uma reconhecida autoridade técnica a desperdiçar o seu talento em tarefas de liderança e comunicação para as quais manifestamente não foi talhada.

É claro que à actual líder da oposição restaria sempre a estratégia do exemplo, ou até do modelo, para persuadir onde a pobreza de palavra tolhe a eficácia do argumento. Mas essa é uma estratégia que requer poder, o poder de fazer, um poder que está confiado a quem governa. À líder da oposição sobra apenas um poder mitigado, que na prática, se confunde com os actos da fala - analisar, criticar, sugerir, propor, prometer, garantir, etc. – os quais, por força da sua natureza, apelam para um sólido e eficaz discurso persuasivo.

Ora o drama é que Manuela Ferreira Leite não está nada à vontade no exercício desse poder do discurso. É preciso arrancar-lhe as palavras. E o que fala, regra geral, parece um penoso ditado, um ditado que traz já escrito, como aquele que ainda hoje a vi a ler perante as câmaras. Um ditado de frases feitas, de generalizações, de banalidades. Um ditado sem convicção, sem chama, sem vida. Uma tristeza. Sim, é-lhe reconhecida uma superior competência técnica nas matérias da sua especialização profissional (economia, finanças, etc.) mas como diria André de Rezende, de que serve o muito saber a quem permanece incapaz de o dizer?

18 novembro 2008

Acrobacia política


Salto mortal em frente:
"Eu não acredito em reformas quando se está em democracia, quando não se está em democracia, é outra conversa, eu digo como é que é e faz-se; e até não sei, se a certa altura, não é bom haver seis meses sem democracia, mete-se tudo na ordem e depois então, venha a democracia" - afirmou a líder do PSD. (Som da TSF)

Pirueta à rectaguarda:
"A dra. Manuela Ferreira Leite estava a fazer uma crítica à forma autoritária e errada de governar do engenheiro Sócrates e deste Governo e ao fazer essa crítica ilustrou-a com aquilo que ela acha que não se deve fazer" - explicou ou tentou explicar Marques Guedes, na sede nacional do PSD. (Som da TSF)

16 novembro 2008

Que filme


Fernanda Câncio traz as manifestações dos professores à sua crónica de hoje, na Notícias Magazine, a partir de uma interessante (e interessada) análise ao filme "A Turma" - Prémio Palma de Ouro do Festival de Cannes. Curiosamente, das manifestações de professores nada nos diz. Do filme, sim, espraia-se por algumas das mais "incómodas" questões que o mesmo levanta: a autoridade do professor, a escolha das matérias, a própria necessidade de aprender. E constata que "há uma parede ali". Ali, onde? Na escola. Na "escola pública, aberta, solidária, inclusiva, que não pode falhar porque é o melhor que temos, a garantia da coesão e da justiça". Será necessário, porém, ler a crónica até ao fim, para se compreender a particular teleologia que a rege e que, precisamente, só na última frase se cumpre. Escreve Fernanda Câncio: "Dificilmente fazer dela [escola] o campo de uma batalha sem tréguas entre professores e governo servirá esse objectivo, o único que conta, o mais importante de uma democracia". Plenamente de acordo. Mas sendo assim, porque insiste o Governo nessa batalha sem tréguas? Que filme.

03 novembro 2008

O homem.com medo de si próprio (9)


O duplo processo de objectivação e alívio



É esta ligação profunda com os processos rítmicos, periódicos e automáticos do mundo exterior que melhor permite compreender as chamadas componentes instintivas da técnica. Em oposição ao preconceito muito generalizado, nomeadamente nos meios académicos, segundo o qual o comportamento técnico é simplesmente racional e sempre dirigido para determinados fins, Gehlen comunga do ponto de vista de Hermann Schmidt: “a objectivação do trabalho que se opera na técnica é resultante de um processo não consciente que se encontra na espécie e a sua motivação provém da parte sensorial da nossa natureza” [22]. Reforçando ainda mais a ideia destas componentes instintivas que actuam na técnica, Gehlen descreve o homem como um ser voltado para a acção, ou seja, para a modificação do seu mundo exterior, podendo o seu ciclo de acção ser analisado como contendo três etapas: movimento plástico dirigido (primeira), que é depois corrigido pela repercussão do sucesso ou insucesso (segunda) e, finalmente, a automatização como um hábito (terceira). Há, portanto, aqui como que uma implicância reactiva, que Norbert Wiener considera ser uma característica muito geral das formas de comportamento, cujo mecanismo descreve do seguinte modo: “na sua forma mais simples o princípio da implicação reactiva significa que o comportamento foi renovado nos seus resultados e que o sucesso ou insucesso destes resultados influenciará o comportamento futuro” [23].

Gehlen lembra-nos igualmente que logo de início o homem objectiva a sua acção, atribui-a ao mundo exterior, isto é, objectiva o seu trabalho. Vistas então as coisas sob este ângulo, a pedra é, sem dúvida, uma qualificada representante da mão, visto que aparece em vez desta e obtém até um êxito muito superior. Não surpreende, por isso, que Marshall McLuhan (1995) venha defender que o homem age sobre a natureza criando extensões do seu corpo, ou que Edward Hall, como mais adiante se verá, reconheça nesses “prolongamentos do seu organismo”
[24] uma marca distintiva dos restantes animais. O homem passa, assim, do pequeno ciclo do que verdadeiramente domina, para o grande ciclo do que só imaginariamente consegue antever e dominar, o que leva à diminuição do seu esforço na razão directa das massas movimentadas. Por exemplo, se o trabalho com a ferramenta é penoso, já para estabilizar o tempo (ex: o regresso da chuva), bastam algumas fórmulas verbais de mágica eficácia.

Adivinha-se então uma outra lei humana fundamental, a tendência para a diminuição do esforço, que embora possua em si mesma um valor antropológico de geral validade, será aqui analisada somente do ponto de vista das suas aplicações técnicas. Antes de mais, vislumbra-se no homem dois diferentes ciclos de acção: o pequeno ciclo de acção - correspondente à autêntica prática do trabalho que lhe reduz literalmente o esforço físico, e o grande ciclo de acção - o da magia, que evita a sua paralização perante as forças da natureza, ao reduzir, por assim dizer, as coordenadas do mundo a padrões humanos. Por outro lado, se a objectivação do trabalho humano na ferramenta produz um efeito superior ao mesmo tempo que diminui o respectivo esforço, então, como adianta Gehlen, podemos discutir o uso da ferramenta, desde logo, nesta perspectiva de alívio ou redução da penosidade físico-orgânica.
[cont.]
__________


[22] cit. in ibidem, p. 26
[23] ibidem, p. 27
[24] Hall, E. T., (1986), A DIMENSÃO OCULTA, Lisboa: Relógio D´Água, p. 14

in Américo de Sousa (2004), O homem com medo de si próprio, Porto: Estratégias Criativas, pp. 21-22

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02 novembro 2008

Haverá mais algum?

O governador do Banco de Portugal sublinhou que estas operações só foram do conhecimento do BdP a partir da entrada de Karim Vakil para a liderança do BPN (antecedeu à presidência de Miguel Cadilhe, que assumiu as rédeas do grupo há alguns meses) porque até aí as informações pedidas tinham sido vedadas pelas anteriores administrações do banco. (Público Online, 02.11.2008, 17h09)

Quase não acredito no que estou ler: "até aí as informações pedidas tinham sido
vedadas pelas anteriores administrações do banco"? Quer isto dizer que qualquer banco que se queira envolver em operações clandestinas de centenas de milhões de euros sem ter que ter à perna o Banco de Portugal só precisa de não responder aos pedidos de informação deste último? Não, não sei se quero acreditar nisto. Mas que fiquei desconfiado, fiquei. Daí que mal pergunte: haverá mais algum que não tenha respondido aos pedidos de informação do BdP? A ver se nos entendemos.

Acidente ou morte anunciada?



Sabe-se agora, de fonte segura, o que o BPN fez. Só não se sabe, de fonte segura, o que têm andado a fazer as autoridades de regulação. Certo é que não se tratou de nenhum acidente. Um acidente, tal como é classicamente definido em teoria do risco, é sempre um evento fortuito, súbito e imprevisto. Sucessivo e reiterado - atente-se na expressão "não tendo vir a cumprir" -, o incumprimento pelo BPN dos rácios mínimos de solvabilidade não foi um acidente. Acidente, acidente mesmo, poderá ser a eventual inércia do Banco de Portugal. Aguardemos pela conferência conjunta, daqui a pouco, do Ministro das Finanças e do Governador do Banco de Portugal. Até logo.